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Kaze
Mr. Mudkip
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    Série experimental [14 +]

    Mr. Mudkip
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    Mensagem por Mr. Mudkip 20.03.12 20:09

    Minha nova fic para vocês: Série experimental. Capítulo O para dar o pontapé inicial a essa história que começará pelo meio, voltará ao início e segue normalmente daí em diante. Espero que gostem. Comentem.

    - 0 -


    - Realmente nos divertimos a beça nesses últimos tempos. – pela tela do notebook, vi as lágrimas entristecidas de meu bom amigo escorrer por sua face arrasada. – Espero voltar a esses dias muito em breve.

    Estava desconfortável por ter de me isolar desta maneira. Meu tratamento exigia cuidados extremos e nem ficar perto dos meus amigos e da minha família me era mais permitido. Permanecia nessa sala de hospital, a me aprisionar a diversos aparelhos estranhos e invasivos sem sequer ter um diagnóstico conhecido.

    A forte pressão em meus pulmões forçava a musculatura ao limite, e ainda assim respirava com dificuldade. A ferida em meu peito era um agravante, embora me lembrasse de uma importante pendência, mantendo-me a lucidez nesse momento difícil. O som irritante dos aparelhos a me manter ainda com vida atrapalhava a muito provável última conversa com eles. Eu mantinha as esperanças ainda acesa somente pela pessoa a minha frente. Ele me fez acreditar quando ninguém mais acreditou e me mostrou um novo mundo de possibilidades.

    - Eu também. – Hugo ergueu a camiseta mostrando as cicatrizes que conseguiu no dia em que nos conhecemos. – Você ainda me paga por isso.

    - Seu teimoso. – eu falava pausadamente em pequenos intervalos, forçando o meu impaciente amigo a aguardar. – A culpa foi sua. Não tive nada haver com aquilo.

    - Sempre tirando o corpo fora, né. – ele olhou para o lado e sinalizou para alguém se aproximar. – Olha só quem veio te ver?

    - Oi. – forçando um sorriso, Rina apareceu finalmente. – Estou morrendo de saudades suas.

    - Também. – agradeci por meus amigos não se esquecerem de mim e virem me ver.

    Ficamos em silêncios por alguns segundos até enfim entrarmos em um assunto espinhoso.

    - Nós três voltaremos lá. – disse decididamente.

    - Você tem certeza? – os dois se entreolharam preocupados. – Foi muito perigoso. Tivemos sorte de nós ainda conseguirmos sair.

    - Mas eles não saíram. – eu não estava tão confiante de minha recuperação, e talvez não pudesse cumprir a minha promessa, embora soubesse que meus dois grandes amigos herdariam minha vontade. – Sei de toda essa confusão, mas eles precisam de nós.

    - Entendo. – Rina abaixou a cabeça. – Eu retiro tudo que eu disse sobre você.

    - Não precisa fazer isso. – não tinha mais forças. Estava prestes a apagar, talvez para sempre. Tinha de me apressar. – Você... Estava certa sobre mim. Todos estavam... Só que eu mudei... E agor...

    Ainda estava ciente, mas meu corpo não respondia mais.

    - E agora? – Rina berrou do outro lado. – Por favor, precisamos de você. Eles precisam. Nem sabemos como voltar, mas precisamos de você com a gente.

    - Rina! – Hugo segurou em seu braço, e imediatamente ela se calou. Completamente inconformada desta situação, ela esmurrou a parede com tamanha raiva, arrancando sangue de sua mão.

    Tentei falar um pouco mais, reunindo minhas energias para falar algo importante cravado em meu peito.

    - Digam... – sob a forma de um leve sibilo consegui mais algumas palavras. – A ele... Que eu... Que eu...

    A escuridão penetrou para dentro de meus olhos e perdi a consciência desse e do outro mundo.



    Próximo capítulo:

    Capítulo I - Sombra e realidade vs. Luz e ficção

    "- Isso é real? - disse um pouco indeciso e duvidoso de meus olhos.

    - Depende do que você considera real? - recebi como resposta outra pergunta bem mais imprecisa do que a minha, mas de certa forma empolgante."




    Última edição por Mr. Mudkip em 20.03.12 21:09, editado 1 vez(es)
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    Mensagem por Kaze 20.03.12 20:30

    *0*
    cabei de ler XD
    ficou muito foda Série experimental [14 +] 936 aguardando mais cap kkk
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    Mensagem por Rafael Arceus 21.03.12 11:56

    Hm..
    Prevejo uma fic cheia de emoção e aventura.
    Esse prólogo foi ótimo Mudkip, essa cena dramática foi perfeita.
    Parabéns e esperarei atenciosamente o primeiro capítulo Série experimental [14 +] 947742
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    Mensagem por Mr. Mudkip 23.03.12 19:41

    Vlw ai. Agradeço a quem está acompanhando.

    Como o nome diz, estou "experimentando" uma coisa nova. Tentar inovar nessa fic e fazer uma história diferente. Vamos ver se eu consigo.

    Eu espero mais desta fic, e por isso demorarei mais a postar os capítulos.
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    Mensagem por Mr. Mudkip 31.03.12 18:25

    Primeiro capítulo de SE, espero que gostem. Trabalhando bastante na história. Comentem!

    - I – Sombra e realidade vs. Luz e ficção -


    - Acorda mamãe. – com extrema insistência, eu tentava fazê-la despertar. – Por favor, acorda! – ao tentar levantá-la, um líquido quente e viscoso encharcou minhas mãos. Não sabia o que era aquilo. Era impossível ver nesta noite sem luar, a escuridão impedia enxergar um palmo a minha frente. – Pai. Cadê você? Me ajuda. A mamãe... A ma... – segurando as lágrimas e envolto às sombras da noite, a realidade começava a me afetar. – Ela... A mamãe não acorda.

    Eu continuei a chamá-lo, mas sem sair de perto dela. O tempo passou feito uma eternidade aterrorizante até faróis surgirem iluminando o matagal próximo ao riacho. A neblina branca e emblemática sobrevoava o lago onde havia algo boiando. Os grilos chiavam irritantemente mantendo o fio de sanidade em minha mente aceso.

    Eu tremia pelo clima frio daquela noite. Grudado ao corpo estranhamente gélido de minha mãe, a sensação frígida aumentava exponencialmente. Ela sempre fora tão quentinha e acolhedora, afagando meus cabelos antes de eu finalmente dormir. Eu sabia. Algo estava errado, mesmo assim eu iria permanecer até tudo se normalizar. Não me afastaria dela enquanto ela não me desse um abraço e um beijo, como sempre fazia quando eu tinha medo. A escuridão, eu morria de medo do escuro, mas nessa noite meu maior medo era outro. Meus pais, eu queria eles comigo. Não queria perdê-los de jeito nenhum.

    Alguém se aproximava, eu percebi pelo barulho da grama alta estar mais perceptível.

    - Meu Deus. – a voz era de uma mulher.

    - Me ajuda. – gritei desesperado. – Minha mãe não acorda, e o papai... O papai sumiu.

    - Tem uma criança! – a mulher mirou a luz fraca da tela do celular em minha direção. – Vem aqui vem.

    - A mamãe. – abracei seu corpo com força.

    - A gente vai tirar ela também. – a mulher tentou puxar meu braço, mas me encolhi para longe dela.

    - Não. – o medo de não estar mais com a minha mãe era terrível. Não conseguia me afastar.

    - Tem um menino aqui, vó. Ele não quer sair. – a voz da mulher saiu esbaforida.

    - Melhor esperar o socorro chegar. – outra pessoa respondeu. – Achei a lanterna. Vou jogar.

    - Tá! – a mulher se afastou, mas logo voltou jogando uma forte claridade sobre o meu rosto, cegando-me. – Ah! – o grito horrorizado da mulher me fez acordar do pesadelo.

    ***

    - E ai mãe? – dei um forte abraço de bom dia.

    - Oi meu garoto. – ela lançou um sorriso em recompensa a meu gesto amável. – Primeiro dia de aula na escola nova. Fico contente em te ver tão animado.

    - Mais que a obrigação. – mordiscando um biscoito de água e sal, minha adorável irmã mais nova emanava sutileza de seu sarcasmo.

    - Claro, né! – ignorei-a completamente e sentei a mesa misturando o leite frio ao café fumegante. – Jamais pensei ir pro C. A., ainda mais do jeito que foi.

    O C. A., Centro Acadêmico Vilas Boas, é um colégio idealizado por um milionário idealista, nascido aqui em Uberlândia. Referência em educação a nível mundial, o C. A. recruta alunos de diversas nacionalidades empregando diferentes métodos de seleção. Os que podem pagar ou possuem influência política garantem suas vagas, embora haja as bolsas de estudo para pessoas como eu. Através de testes variados, são selecionados adolescentes que se destacam nestas avaliações. No meu caso, pela entrevista eu acabei passando.

    - Estou orgulhosa por você conseguir entrar em uma das melhores escolas com uma bolsa de estudos, mesmo desse jeito viu. – ela mordeu a barra de cereais enquanto lia uma revista de moda.

    Todo dia de madrugada, minha mãe levantava pra ir correr envolta do Parque do Sabiá, e ainda tinha disposição pra ir à academia, tudo isso antes de ir trabalhar.

    - Vou me arrumar. – ela colocou o copo na pia e jogou a embalagem da barra de cereal no lixo. – Daqui a pouco eu desço pra te levar.

    - Tá bom. – abri o pacote de bolacha recheada e molhei na mistura de café com leite. A bolacha derreteu em minha língua com um gosto de café.

    Bocejei meio desajeitado. Iria demorar a ter o costume de levantar cedo. Geralmente eu levantava pelas dez da manhã. Ficava acordado noites a fio com frequência, o vício pela internet não me largava, ou o contrário.

    - Bom dia! Lucas é hoje. – meu pai desceu as escadas já me felicitando.

    - Pois é. – disse meio sonolento e mudando de assunto. – E você terminou o projeto daquele novo restaurante do shopping?

    - Ainda tenho uns detalhes pra decidir com o proprietário, fora isso tá tudo certo. – ele sentou-se do meu lado, já colocando café na xícara. – Como vai minha filhinha?

    - Ótima pai. – o papai sempre foi à única pessoa ao qual minha irmã era gentil.

    - Estou doido pra ir nele. – meus amigos ficavam me enchendo de perguntas sobre quando ia ser a inauguração. Aproveitando que minha espinhenta irmãzinha estava solicita a aproximações, decidi me retratar. Ultimamente não tenho tratado ela muito bem. – Annelise, mesmo que não acredite, eu quero ver você no C. A. Se eu consegui...

    - Pelo menos você sabe. – ela nem esperou eu terminar. – Eu não acredito que ia falar isso. Se for assim é mais idiota do que eu pensei.

    - Hum. – meu pai sorriu, enquanto ela deixou a mesa e subiu pela escada.

    Mesmo ela sendo inoportuna e esnobe, a Annelise acreditava em meu potencial, mesmo quando eu negava e persistia em fracassar. Terminei de comer em companhia do meu pai e então subi para escovar os dentes. Peguei a mochila e o DS lite e deitei no sofá da sala para jogar os desafios do dia do “Brain Age”, enquanto minha mãe terminava de se arrumar.

    - Sônia já estou indo, amor. Boa sorte, filho. – meu pai acenou se despedindo. Pegou as chaves do carro e saiu para a garagem.

    - Me espera pai. – a Annelise correu até a garagem lançando um beijo de despedida para mim.

    Alguns minutos depois, minha mãe desceu vestida com um terno preto bem alinhado ao corpo, o cabelo com mechas loiras nas pontas, estava linda como sempre. Recentemente, ela fora promovida a gerente sênior dentro de uma multinacional e ficara ainda mais vaidosa. E devido ao aumento considerável em nosso orçamento, planejávamos nossa primeira viagem internacional para as férias de fim de ano, provavelmente um tour pela Europa.

    - Vamos? – ela chacoalhou as chaves na mão.

    - Sim. – levantei do sofá sem tirar a atenção do desafio de calcular as sentenças matemáticas.

    - Aproveita e pega essas contas ai, Lucas. – ela apontou para a gaveta e saiu para a garagem, o rugido do motor já soando.

    Abri a gaveta e peguei um chumaço de papéis e sai pela porta da frente, entrando no carro.

    - Você está levando o cartão? – tirei do bolso a carteira para me certificar. Sem ele seria barrado na porta do C. A.

    - Tudo certo. – terminei os desafios do dia e decidi guardar o console. Peguei meu Ipod, selecionando a playlist de músicas pop e relaxei no banco do carro observando o trânsito a cada dia mais parecido com de grandes centros, como São Paulo e Belo Horizonte.

    Seguimos até a Rondon Pacheco, parando na porta principal do C. A., um enorme galpão, ocupando o quarteirão inteiro repleto de árvores ao redor. Esperava um tráfico constante de carros com os pais levando os filhos, mas a maioria dos estudantes vinha andando ou montados à bicicletas, desde cedo adquirindo independência.

    - Boa sorte. – eu desci do carro ajeitando a mochila e agradecendo o apoio.

    - Valeu mãe. – acenei e me dirigi à portaria, passando meu cartão na catraca.

    Caminhei até a recepção procurando algum conhecido.

    - Nada. - envergonhado por ser o primeiro dia e não conhecer ninguém, comecei a me remoer em ansiedade. Eu no último ano mudando para um colégio cheio de pessoas ao qual não pertenciam ao meu grupo social e sem perspectivas de conseguir me interagir bem com pessoas acostumadas com extremo luxo. Pensei em meus amigos, todos aproveitando as férias, e eu já começando as aulas. Um saco.

    Enquanto eu divagava, muitos conversavam tranquilamente na recepção, cumprimentavam conhecidos ou zoavam com os amigos.

    - Hugo, é verdade mesmo o que estão falando? – sentado a beira da escada, o garoto repousava a cabeça sob os joelhos enquanto o outro falava sem parar.

    - O que? – ele fez careta ao se levantar.

    - Você foi convidado pra treinar nas categorias de base do Flamengo e nem falou nada pra gente. – ele socou o ombro do garoto falastrão e me encarou.

    - Dá um tempo viu. – a ofensiva forte dele me desatou. Ele era ameaçador e pouco amistoso. Pura encrenca.

    Procurando me desviar de um possível desafeto, fingi estar atrás de algum funcionário para ver se conseguia informação e acabei trombando em um garoto de olhar curioso.

    - Foi mal. – sorri sem graça.

    - Sem grilo. – ele coçou o queixo e apontou para um aglomerado. – É novo aqui, né?

    - Sou sim. – o garoto falava em tom baixíssimo, escondendo-se por trás de seus óculos.

    - Seu nome... – ele pegou um caderno e começou a rabiscar algo. – Hum, posso fazer, quem sabe...

    - Lucas. – imediatamente ele parou o que estava fazendo.

    - Aqui. – ele arrancou a folha e me entregou. – O único Lucas da lista é você. Então... Hehehe! – ele coçou o queixo novamente. – Sou Iann, mas me chame de Cooper, certo.

    - Tá. – ele parecia fora do ar.

    - Ah! Sala 3-B, lá em cima viu. – Iann apontou para o teto. – Você é da minha sala. Seremos colegas, legal né, hehehe!

    Mesmo pelo o que o Iann disse, achei melhor me certificar. Talvez fosse um trote de veteranos pra fazer os novatos pagarem mico. E o jeito dele também não me parecia nada confiável. O papel que ele me entregou, tinha dois bonequinhos desenhados toscamente. Uma criança pequena desenharia melhor que aquilo.

    Vi o mural com as listas das salas e resolvi enfrentar a multidão de alunos. Com muito custo, consegui vencer esta barreira apenas para confirmar a informação que se provou verdadeira.

    Subi as escadas até chegar ao bloco B. Encontrei a sala 3 e entrei sem cerimônias.

    Havia algumas pessoas, no entanto nem ligaram para a minha presença. Me senti acuado ao ver sentado na primeira carteira o garoto que me encarou. Estava novamente de papo com seu amigo e continuavam a conversar mesmo após a pequena desavença.

    - E ai Lucas! – no fundo, Iann me gritou escorado com os pés sob a carteira. – Senta aqui, hehehe.

    - Hum, valeu. – sentei na fileira ao lado pegando o notebook que ganhei de presente para poder estudar.

    - Nunca te vi aqui. – Iann falou distraidamente. – É novo aqui, né?

    Ele já tinha me dito isso, mas preferi ficar calado.

    - Pois é. No último ano que consegui entrar. – na tela inicial do notebook mostrou sinal para internet. – Aqui pega sinal?

    - Claro, ué. – Iann coçou o queixo falando como se internet dentro de uma escola fosse normal, embora no momento estivesse absorto na garota que acabara de entrar.

    Cabelos loiros, olhos verdes, roupas estilosas, gata demais.

    - A Fel tá um espetáculo, hehehe! – Iann cruzou os braços por cima da cabeça, piscando para ela. – Ela fica mais gostosa a cada dia que passa. – cochichou, permitindo somente a mim ouvir.

    Sorri sem jeito. A menina estava perto e ele falando isso.

    - Oi Cooper. – ela acenou de volta. – E você? – pela aproximação da garota eu acabei sentindo seu perfume doce e comecei a espirrar. – Quem... hã, é?

    - Desculpa, atchim! – me senti um idiota espirrando sem parar. – Lucas, atchim.

    - Sou a representante, e por isso tenho a responsabilidade de te mostrar o C. A. – ela sorriu, escondendo o riso. – Felícia, mas todos me chamam de Fel.

    - Assim eu fico com ciúmes, hehehe! – Felícia bagunçou o cabelo já despenteado do Iann, deixando-o feito um espantalho.

    - Sem chances garoto. – ela colocou a mochila na carteira a frente da dele. – Lucas qualquer coisa é só falar comigo viu.

    - Tá bem. – enfim parara de espirrar e pudera falar normalmente.

    - Pode falar agora. – a garota intimou Iann ao apertar seu pescoço. – Pra você tá andando com o Cooper, alguma coisa aconteceu. – ela virou pra mim ameaçadoramente.

    - O que, por exemplo? – afastei as mãos por instinto de defesa.

    Ela começou a rir.

    - O que tem de bom na net hoje? – Felícia falou descontraidamente.

    - Caiu direitinho. – Iann a cumprimentou. – Melhor impossível.

    - O que? Mas o que? – estranhei a mudança repentina.

    - Relaxa, só gostamos de brincar um pouco. – ela me deu um beijo na bochecha e provocou o Iann.

    - Então não é nada demais... – nunca estive tão perto de uma garota tão linda como ela. Além disso, tinha um jeito meio insano e divertido. Tinha certeza que eu estava vermelho.

    - Olha a cara dele, hehehe! – O Iann riu e começou a fuçar pelo meu notebook, sem ao menos pedir permissão.

    Escondi o rosto por trás do notebook, dando uma cotovelada de advertência no Iann.

    - Hã? – A Felícia estava distraída e nem notou.

    - Um vídeo no youtube. – desconversei.

    - Então Lucas, mora onde? – Felícia olhava disfarçadamente para o garoto da primeira carteira.

    - Umuarama, perto da UFU. – disse desconcertado.

    - Você é bolsista, então. – ela voltou sua atenção para mim. – Eu sou carioca, mas moro aqui durante as aulas no mesmo prédio que esse aí. – ela apontou para o Iann. – E também a Renata. Aquela lá. – Renata tinha o cabelo curto e vermelho, e estava conversando com outras meninas. – Moramos juntas.

    - Legal. – o professor finalmente chegara interrompendo nosso papo e então as aulas começaram firmes, sem as comuns enrolações de início de ano.

    ***

    No intervalo, a Felícia e o Iann foram me mostrar à biblioteca.

    - Os alunos não são obrigados a assistir as aulas, mas precisam desenvolver projetos paralelos caso escolham essa alternativa. – a Felícia folheou alguns livros da estante de literatura estrangeira. – Como sabe as aulas são em período integral. As matérias básicas são todas dadas pela manhã caso queira prestar vestibular ou ter o mínimo de conhecimento.

    - Deixa desse papo. – o Iann rabiscou um bigode em uma menina do pôster. – Vamos comer alguma coisa.

    - Se quiser... – ela guardou o livro de volta.

    - Fala mais. – disse meio receoso de irritar o Iann.

    Ela sorriu e sinalizou um cai fora para o Iann.

    - Vejo vocês depois. – ele caminhou desengonçadamente, cantarolando alto. – Para... Para... Paradise.

    - Ele não tem conserto. – Felícia me ofereceu uma bala de menta enquanto continuávamos a percorrer a biblioteca.

    - Shhh! – uma garota de atitude imperiosa pediu por silêncio. Ela parecia realmente concentrada em sua leitura.

    Seu rosto e corpo marcantes me chamaram a atenção. O cabelo preto na altura dos ombros, olhos azuis, as maçãs do rosto vívidas e rosadas, de corpo esguio e delicado. Poderia facilmente ser uma modelo se quisesse.

    - Melhor irmos. – Felícia segurou em minha mão me puxando para a saída. – A Anita é meio chata mesmo.

    Senti uma sensação calorosa enquanto a Felícia segurava em minha mão. Algo diferente e inesperado.

    1 SEMANA DEPOIS...

    - Lucas, depois das às aulas vamos ao shopping? – era a primeira vez que o Iann me chamava.

    - Legal. – abri a lata de coca, bebendo um gole. – Quem vai?

    - A galera toda. – ele mostrou o visor do notebook com os últimos lançamentos do cinema.

    - E ai? – A Felícia apareceu de surpresa atrás de mim. – Você vai?

    - Tem uns filmes legais, acho que vou sim. – ela sorriu e sentou-se ao meu lado.

    As amigas dela nos cumprimentaram e colocaram as bandejas do almoço junto ao Iann.

    - O Hugo e o pessoal do futebol também vão. – ele comentou. – O que acha hein, Gabi, Patrícia!

    As garotas não se conteram lançando pequenos gritos de excitação.

    - Fiquei sabendo. – Felícia abaixou a cabeça e pisou em meu pé.

    - E porque não disse nada? – a Patrícia questionou.

    - Só por isso. – Felícia apontou a reação exagerada.

    - Você sabe por quê... – ela ficou envergonhada de falar na nossa frente.

    - Todo mundo sabe que você gosta do Hugo, mas eu só posso dizer uma coisa. Não é a única. Entra na fila – o Iann resolveu se intrometer. – Nem precisa me olhar assim, hehehe! Só to falando a verdade.

    Hugo era o astro do futebol da nova geração. Uma grande promessa, embora fosse problemático. De atitudes questionáveis dentro e fora do campo, ele causava furor por onde passava. Segundo os rumores e as manchetes de jornal, pegou metade das garotas do C. A., sem citar outras ilustres desconhecidas, frequentava todas as festas que podia mesmo em vésperas de jogo, arranjou mais brigas e discussões do que os gols que já fez em sua curta carreira.

    - Cooper, cala a boca. – a Patrícia se segurou para não bater nele.

    - Eu tenho que pegar um livro praquele trabalho de física, me ajuda Fel? – vi como a Felícia estava estranha e por isso achei melhor inventar uma desculpa para tirá-la dali.

    - Certo. – ela saiu sem dizer nada.

    - Joga fora pra mim depois. – pedi ao Iann para colocar meu lanche no lixo.

    - Falô. – ele piscou maliciosamente.

    ***

    Fomos ao terraço lateral para conversarmos sem interrupções.

    - O que foi? – disse quando chegamos.

    - Nada. – ela puxou o cabelo para detrás da orelha e evitou me olhar nos olhos.

    - Não me parece isso. – ao tentar me aproximar, ela se afastou e evitou nos tocarmos.

    Ficamos nessa por algum tempo, e acabei por desistir de fazê-la confessar seus sentimentos pelo Hugo e poder enfim me esquecer dela.

    - Tubo certo. – ao me virar para ir embora, Felícia me abraçou pelas costas. – Fale quando sentir vontade.

    - Ele disse que gosta de mim de verdade... – ela revelou o que eu suspeitava. – Não sei se acredito nas palavras dele.

    Pelo longo histórico dele, seria difícil acreditar mesmo.

    - Ele... Pareceu tão sincero. – mordi o lábio evitando responder.

    Durante esta semana ficamos muito próximos e comecei a gostar dela, embora soubesse, Felícia me via apenas como amigo. Não forcei a barra, jamais faria isso.

    - Fale com ele. – tinha de dar uma resposta a ela e isso foi o melhor que consegui pensar. – Só assim você pode acabar com suas dúvidas em relação a ele.

    Ela pressionou nossos corpos e se soltou.

    - Você tem razão. – ela segurou em minhas mãos e beijou minha bochecha. – Lucas, você é um amigão viu.

    - Hum. – sorri para ocultar a insatisfação de jogá-la para outro cara. – Vamos?

    - Vamos. – ela correu pelo saguão principal em direção a cantina e resolvi fazer o mesmo.


    ***

    - Não acha melhor ir com a gente? – o Iann pegou a mochila e cutucou a Felícia. – Pra quê esperar a Gabi terminar de assistir aula?

    - Vocês vão voltar aqui mesmo. – disse chateado. A conversa com a Felícia me deixou pra baixo. – Pelo menos faço companhia a ela.

    - Então espera a gente na esquina. – o Iann saiu junto a Felícia e a Patrícia. – Só vamos deixar as mochilas e voltamos.

    - Tá. – peguei meu DS lite pra me distrair.

    Alguns minutos se passaram até o momento em que finalmente tudo mudaria.

    - Ei! – ao me virar para ver quem era, recebi um soco potente, acertando em cheio a minha testa, lançando-me no meio fio.

    O formigamento em minha testa embaralhou minhas vistas, a confusão mental dando ânsia de vômito.

    - Quê isso?! – disse confuso e apreensivo. – Ai minha cabeça. – vi o sangue escorrer e respingar no chão. – Por que fez isso?

    - Pra não se meter com a mulher dos outros. – ao conseguir definir as imagens novamente, pude ver em extremo estado de fúria, Hugo avançar contra mim.

    Tentei me levantar, mas senti tudo girar. Aproveitando que eu estava indefeso, ele desferiu uma joelhada em meu peito, deixando-me sem ar.

    - Covarde! – a voz daquela garota me era familiar.

    - Sai fora daqui, Anita, senão vai sobrar pra você. – Hugo disse ameaçadoramente.

    - Você não me mete medo não. – ela levantou a voz contra ele.

    Hugo acertou um chute em minhas pernas, me fazendo rolar para perto dos carros indo para o rumo da Anita.

    - Hugo... – Felícia e Iann apareceram, presenciando uma cena deplorável. Ela parecia estar em estado de choque, sem saber se os seus olhos lhe mostravam a verdade.

    Ao vê-la, Hugo se sentiu acuado e correu sem rumo.

    Perturbado, ele não viu o carro passar, batendo de encontro ao vidro, arrancando-lhe sangue do abdômen e caindo no chão desacordado.

    O motorista desviou do corpo inerte de Hugo, fugindo dali. Em um segundo eu era a vítima, mas a roda girou e os papéis se inverteram.

    - Ajudem ele. – me arrastei para perto de Hugo ao ver que todos estavam perplexos para fazer qualquer coisa agora.

    Somente uma garota de cabelo castanho se aproximou para me ajudar a tirá-lo do meio da rua. Aos poucos todos vieram socorrê-lo, já recuperados do susto inicial.

    - Zuuuuumm! – um brilho forte transpassou nossos corpos. O calor inundou meu coração, aquecido, pulsante e acelerado, parando de bater neste plano.

    A luz ardente nos consumiu.


    ***

    - Isso é real? – disse um pouco indeciso e duvidoso de meus olhos.

    - Depende do que você considera real? – recebi como resposta outra pergunta bem mais imprecisa do que a minha, mas de certa forma empolgante.

    Globos de luz verde pairavam a nossa volta irradiando-se em fótons amarelados e incandescentes. O piso de metal frio e negro, a atmosfera vazia, mais leve. Ainda estávamos na Terra? Não conseguia imaginar ou pensar onde estávamos ou o que estava se passando. Um rastro de luz nos capturou e nos lançou em uma história perfeita de ficção científica.

    - Forasteiros, devo presumir. – um homem que pelas suas características descendia do oriente se aproximou. Trajava roupas muito estranhas fora do convencional.

    - Onde estamos? – a garota de cabelo castanho se antecipou a mim.

    - In série. – ao ver que não fazíamos ideia daquilo, acabou rindo. – Vocês são nuklats. Há muito não apareciam aqui. – ele olhou para mim e o Hugo analisando nossos ferimentos. – Sou conhecido nestas terras como Kaze. Irei responder todos os questionamentos de vocês, mas primeiro devemos cuidar dos feridos. Pode atrair certos abutres se ficarem assim.

    Felícia ajoelhou-se, escondendo o rosto em seu cabelo dourado para não mostrar suas lágrimas. Iann não conteve seu deslumbramento e entusiasmo. Anita segurou um globo iluminado sem saber em que mais acreditar. A garota de cabelo castanho estava calma e ao menos não demonstrou estar abalada. Eu segurava o corpo de Hugo, procurando manter a mente aberta para não enlouquecer e entrar em pânico.


    Próximo capítulo:

    Capítulo 02 - O princípio e o início

    "Esqueçam tudo que aprenderam até aqui, não passa de lixo."
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    Mensagem por Kaze 31.03.12 21:55

    Caraka *0*
    tá muito ownante kkkk
    me sinto o lucas '-' jogando a pessoa que eu gosto pra cima de outro cry -qqqq
    o começo ficou muito foda, eu curto muito historias que retratam o ambiente como frio, tristeza, tragedia *0*
    mto fodon
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    Mensagem por Mr.Coal 01.04.12 3:13

    OMG, quero ler mais aisuaisuiausiausiausiauisuaisuaiusia

    que reviravolta nesse 1º capítulo... a historia em si já estava emocionante, com a virada no final ficou ainda melhor Série experimental [14 +] 534588

    essa experiência está trazendo frutos eu espero Série experimental [14 +] 936 mto bom mudkip, parabéns õ/
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    Mensagem por Mr. Mudkip 19.08.12 18:22

    Depois de muito tempo, estou voltando com minhas fics (nem sei se alguem notou minha ausência, mas...). Estarei num ritmo mais lento por enquanto, pois estou numa época mais corrida e sobre pouco tempo pra escrever, ok, mas por enquanto o segundo cap de SE, espero que curtam!

    Ps: Agradecer os comentários de todos, por isso postarei primeiro os caps desta fic.


    Capítulo II – O princípio e o início


    O homem que se dizia chamar Kaze nos levou até uma cabana singela construída com pedaços de metal negro, nos oferecendo uma massa seca e quebradiça e um pouco de água salobra. Com os medicamentos a sua disposição, ele tratou de Hugo que tinha ferimentos mais graves e em seguida de mim. Sentou-se a nossa frente esperando por um bombardeio de perguntas.

    - E então? – ele se surpreendeu ao perceber o silêncio.

    - Fale você primeiro... – a impetuosa garota de cabelo castanho excedeu-se na animosidade. – Creio que já saiba o que precisamos saber.

    - Pois bem, jovens. – ele agarrou um globo ametista, desmembrando as bordas em pequenos triângulos. – Considerem-se com sorte por caírem nesse lugar. Apesar de perigoso, nas áreas periféricas só os patifes e gorados permanecem, contudo, vocês seriam mortos rapidamente, mesmo por aqueles farrapos.

    - Mortos? – Anita assustou-se ao ver o rumo da conversa.

    - De que lugar vocês vieram? – um emaranhado de triângulos surgiu do globo em planos geométricos variados.

    - Minas... – eu me calei ao perceber que daria uma resposta imperfeita.

    - Diga você onde estamos. – a garota novamente excedeu-se na rispidez.

    - Não parecem saber de muita coisa, por essa razão terei de cobrar por meus serviços. – os triângulos em sua mão começaram a brilhar. – Não me entendam mal. Sou contratado do Estado Central, apenas um oficial de fronteira, mas não posso perder a oportunidade. Informações também são valiosas.

    - Faça como quiser, mas seja breve. – a garota queria respostas, já eu somente queria voltar para casa. – Desde que possamos pagar...

    - Não se preocupem quanto a isso, vejo que vocês têm bastante a oferecer. – ele colocou os triângulos sobre o dorso da mão.

    - Como assim? – Iann se animou com os rumos da conversa.

    - Vocês estão em um lugar onde apenas a vontade se impõe como fonte de poder. Um lugar ao qual não desejaria que estivessem, principalmente no momento atual.

    - Vontade? – as mãos de Iann tremularam de excitação.

    - A vontade rege a balança do equilíbrio. E vocês, nuklats, meros estrangeiros tem dificuldade em domar esse sentimento insensato e caprichoso.

    - Que parada toda é essa? – Iann era o único interessado em saber mais.

    - Esta é uma terra sem povo e permaneceu assim até que estranhos fenômenos trouxeram os primeiros moradores deste lugar. Rapidamente, eles perceberam a existência de um poder extraordinário. Transformar o desejo, aquela emoção cravada no fundo da alma em energia. Ser capaz de manipulá-la e usá-la de formas inimagináveis.

    - Isso é impossível. – impus uma negação imbecil diante do cenário alienado a minha realidade.

    - Sei que pode ser difícil assimilar essas informações, só que a cada segundo as suas valiosas vontades serão cobradas, então uma dica, sejam rápidos. – Kaze evidenciou os triângulos iluminados de azul. – Não gosto de ser um aproveitador, surpreendentemente já poderei cumprir a minha cota, mas só poderei terminar a transação ao fim dessa explicação. Uma norma imposta pela Central.

    - Qual é a dessa Central? – Iann cutucou Felícia ao percebê-la tão quieta.

    Kaze apenas fez um sinal negativo indicando que nada poderia dizer.

    - Podemos voltar para casa? – não me importava com aquela baboseira.

    - Não que eu saiba. – ele recolheu os triângulos anexando-os em uma placa empoeirada, sugando a luz azul para um cano enferrujado. – Pelo que vejo vocês vieram de outra dimensão, e eu desconheço alguém que tenha conseguido retornar. – esmoreci ao saber disso. – Como oficial da Central, devo orientá-los a procurar um dirigente que esteja disposto a recrutá-los, é o máximo que vocês podem fazer no estado atual.

    - Quem são esses caras? – Iann era o único interessado em conhecer mais sobre este lugar estranho. O restante de nós permanecia em choque com a notícia de que não voltaríamos para casa.

    - A Central distribuiu vinte e três áreas de seu comando para quem estivesse disposto a se associar aos seus planos de controle. – Kaze observou Hugo se agonizar, e vagarosamente abrir os olhos. – Quem domina estes territórios deve pagar impostos exorbitantes, mas como moeda de troca recebe vantagens militares e políticas. Existem territórios independentes, que nem mesmo a Central se atreve a enfrentar, mas não descarto um motim para que finalmente ele possa ter o controle total de In série.

    - Você já falou sobre esse In série. O que é? – Iann continuava curioso.

    - Mais que merda... – Hugo esbravejou e coçou os olhos, estranhando o lugar simplório. – Que porra de lugar é esse!

    - Você não iria acreditar se contássemos mesmo, seu babaca. – Anita descontou um pouco de suas frustrações em cima de Hugo.

    - Ele me lembra um velho rabugento da Central. – Kaze apertou as mãos procurando esconder a ansiedade. – Perdão. Não é momento para lembranças tolas, não é mesmo? – Kaze se apoiou na mesa de madeira rangente preparando-se para noticiar algo que eu temia acontecer. – Agora que ele acordou, vocês devem partir. Procurem um posto de cadastramento, e daí resolvam se preferem se associar a algum dirigente ou trabalhar diretamente para a Central. Recomendo que desenvolvam suas habilidades, é a única forma de permanecer vivo e ter um mínimo de dignidade ou talvez não.

    Kaze forçou a voz tentando mantê-la agradável, mas ele não conseguia esconder certo remorso em cada palavra. Ele parecia ser uma boa pessoa, e estaria disposto a nos ajudar se pudesse.

    - Esta nos expulsando? – Anita estava temerosa com o que se escondia lá fora.

    - Não posso ajudá-los. Fiz o máximo que pude. Poderia ser pior, então melhor irem. – Kaze estava solidário, queria nos advertir, só que ele evitava falar. Havia algo de errado, e ali não obteríamos mais respostas.

    - Vamos. Ele já deu sua última palavra. – a garota de modo grosseiro levantou-se esperando que a copiássemos.

    - Talvez não seja. – Anita disse o pensamento que se prendia em minha cabeça.

    - Alguém pode me dizer quem é esse japa aí e do que vocês estão falando? – Hugo ainda não notara a atmosfera bizarra a nossa volta.

    - Se quiser realmente saber, prepare-se. – Iann animou-se ao ter a oportunidade de contar o pouco que sabia desse lugar. – Você vai pirar!

    ***

    - Vocês vão dar ouvido a esse japa ai? – Hugo estava furioso por desistirmos tão facilmente. – Isso tudo ainda é muito pra minha cabeça, mas mesmo assim, temos de fazer tudo pra voltar.

    - Eu não tiro sua razão Hugo, só que depois do que o Kaze disse, acho melhor nos prepararmos antes de sair por ai. Podemos ser mortos. MORTOS! – Anita elevou-se com mais tensão desde que chegamos neste novo mundo. – Sabe o que pode acontecer se não formos cautelosos? Não sabe. Você não sabe nada deste lugar. Ele sabe. Ouso dizer que confio mais nele do que em você.

    - É muito idiota mesmo, garota. – Hugo encarou Anita segurando-se para não partir pra agressão. – Eu...

    - Parem com isso vocês dois. – a garota de cabelos castanhos irritou-se com tantos berros. Discutíamos o que iríamos fazer enquanto Kaze aguardava nossa decisão. – Calem-se! Cada um tem o direito de fazer o que achar melhor.

    - Obrigada Rina. – Anita agradeceu o apoio.

    - Então o que você propõe? – Iann resolveu se intrometer.

    - Pelo que estou vendo, acho que não chegaremos a um consenso. – Rina caminhou até a porta e chamou Kaze de volta.

    - E então? – Kaze percebeu o clima pesado.

    - Eu vou ir para a Central tentar um jeito de voltar pra casa. – Hugo se antecipou.

    - Se Kaze permitir... – Anita o olhou disfarçadamente. – Eu gostaria de ficar um pouco aqui e conhecer mais sobre esse lugar e o que podemos esperar.

    - Eu vou me juntar a algum dirigente que queira me recrutar. – Rina foi categórica em sua decisão.

    O restante de nós permaneceu em silêncio por um tempo.

    - Depois de refletir bastante, acho que vou ficar com a Anita. – disse enfim.

    - Vou com o Hugo, quero ir embora o mais rápido possível daqui. – Felícia disse aos prantos, escondendo suas lágrimas. – Cooper, você vem comigo, né?

    - Hum... – Iann se sentiu pressionado e não conseguiu sair da situação. – É claro. Vou com você.

    - Então parece que se decidiram. – Kaze surpreendeu-se com o rumo que cada um de nós decidiu para si. – Eu permito que vocês fiquem aqui, mas somente por pouco tempo. Talvez eu tenha me precipitado em meu julgamento.

    - Muito obrigada. – Anita o abraçou se arrependendo logo em seguida, ao perceber sua indiscrição. – Desculpe...

    - Até a próxima. – Rina acenou um breve adeus e saiu sem mais dizeres.

    - Então vamos? – Hugo aproveitou as despedidas e saiu também. – Até a volta, otários.

    - Acho que deveríamos ficar juntos, mas... – Iann não esperava que as coisas terminassem desta forma. – Esse lugar parece perigoso, cara. Não sei se pode confiar nele. – ele cochichou apontando para o Kaze.

    - Tranquilo, Iann. – eu disse com firmeza. – Eu me preocupo é com vocês. Pelo jeito que o Kaze falou, não sei se é uma boa ideia vocês irem para essa Central e ainda mais com ele. – Apontei para o Hugo.

    - O Hugo acha que lá podemos conseguir alguma informação. E a Fel... Não posso deixar ela sozinha com esse cara. Essa Rina é que é corajosa. Sair assim sozinha.

    - É como ela disse. Cada um faz o que achar certo. – cumprimentei Iann e o desejei sorte. – Nos veremos logo.

    - Toma cuidado. – ele me abraçou e logo após saiu apoiando a Felícia, que se foi sem dizer nada. Ela era quem estava mais abalada com tudo isso, embora eu também estivesse aterrorizado.

    - Agora somos só nós dois. – Anita parecia aliviada em não ter de ficar sozinha como a Rina.

    - Pois é. – segurei sua mão, gelada e trêmula percebendo que eu não era o único com medo do que poderia vir a seguir. – Achei a sua decisão a mais sensata.

    Anita sorriu e me abraçou. Ela escondeu o choro com um suspiro doloroso e se voltou para Kaze.

    - Eu realmente esperava que vocês fossem ficar todos juntos, mas eu me enganei completamente. – Kaze sentou-se a nosso frente. – Talvez vocês consigam sobreviver aqui. Suas vontades são mais fortes e decididas do que eu pensava.

    - Kaze, o motivo de eu ficar é... Bem, eu quero saber mais sobre esse lugar e também gostaria que nos ensinasse sobre como controlar nossa vontade e gostaria de saber por você. Não sei o motivo, mas sinto que posso confiar em você. Minha intuição pode até estar errada, só que eu vou segui-la. – ela apertou minhas mãos e senti fluir uma energia quente e impactante pelos meus dedos.

    - Não sei se é uma boa ideia... – Kaze relutava.

    - Você disse que deveríamos procurar alguém que quisesse nos ensinar. Kaze, você nos ensinaria? Poderia nos mostrar como é esse poder que você diz ser tão extraordinário? – Anita emanava uma aura impulsiva, e ali comecei a entender do que Kaze falava.

    - Deveriam procurar alguém com experiência. Um discípulo é fruto do trabalho e sabedoria de seu mestre, e infelizmente eu não possuo as qualidades necessárias para ensinar.

    - Eu acho que você está errado. – Anita simplesmente sorriu, derrubando as desculpas de Kaze por completo.

    Kaze fechou os olhos por um instante.

    - Certo. Mas antes de tudo, precisam saber de algo. – ele levantou-se e caminhou até um baú empoeirado. – Esqueçam tudo que aprenderam até aqui, não passa de lixo. – Kaze retirou do baú uma pistola prateada reluzente com estranhas marcações, engatando o gatilho.


    ***

    Kaze repousou a pistola na mesa de madeira apodrecida, logo após uma exibição inacreditável de seu poder. Era impensável, inacreditável. Mal conseguia manter a respiração, sequer o controle dos meus atos. Minha mente lutava para compreender o que se passara aqui, entender e aceitar tudo isso como algo possível, passível de ser real.

    - Há dois fatores desencadeantes para se liberar a vontade presa em seus corpos. – Kaze nem esperou nos recuperarmos do susto inicial e já estava nos explicando os princípios básicos do que acabamos de presenciar. – O princípio e o início da vontade. O ponto inicial que os induz a agir frente à maioria das adversidades e aqueles que surgem em diferentes situações.

    - Como assim? – minha cabeça ainda tentava se recuperar.

    - Como vocês se comportam frente às constantes dificuldades, e como vocês lidam com novas situações? – Kaze tentou simplificar.

    - Elas não seriam a mesma coisa? – Eu concordava com a Anita. Para mim teriam o mesmo sentido. – O que muda nesse caso é só o sentimento, a emoção que estamos sentindo no momento.

    - Sim e não. A origem e o seguimento da vontade podem ter a mesma fonte ou serem completamente opostos. – Kaze colocou uma pedra em cada mão. – Pensem nessas pedras como suas vontades e minha mão como uma forte pressão sofrida em algum momento difícil de suas vidas. Se questionem... O que os leva a agir nas diferentes situações enfrentadas no decorrer da vida? – ele pressionou a pedra na mão esquerda. – E o que mantêm seus objetivos acesos em suas almas? – ele fez o mesmo com a mão direita. – Pode parecer simples, a influência das emoções, mas a sua importância muitas vezes é questionável... – ele abriu as duas mãos. Na mão esquerda, a pedra esfarelou-se em areia. Na direita, a pedra partiu-se em partes menores. – Sua vontade adapta-se e molda-se de acordo com a dificuldade enfrentada e nem sempre está relacionada ao sentimento e sim com a situação vivida. Ela nunca mais retornará ao que era. A cada novo desafio, ocorre a mudança, sutil ou grandiosa. Às vezes, ao passar por uma mesma experiência novamente... – Ele pressionou as duas mãos novamente e abriu em seguida. A areia permaneceu na mão esquerda, mas na mão direita as pedrinhas viraram poeira. – Ela ainda cause efeitos em suas vontades. – ele juntou as duas mãos, misturando a poeira e a areia. – No entanto, não há como separar e muito menos prever as mudanças em suas vontades.

    - Está querendo dizer o que com isso? – Anita transpirava intensamente. – Eu tenho que... Tenho que... Questionar os motivos de querer estar viva? Porque eu quero estar viva?!

    - Pode ser uma pergunta assustadora, não é mesmo? – Kaze lançou a poeira no ar. – Estar vivo é algo tão natural, tão cômodo, mas quando você começar a pensar... Pode acabar perdendo essa sensação de segurança. Exatamente por isso eu disse que tudo o que aprenderam até hoje não passa de lixo. Principalmente seus ideais.

    - Eu ainda não entendo. – disse francamente.

    - Mas é claro que não. – Kaze riu. – Eu mal comecei a explicar. Ainda há muitos pontos a serem debatidos. Devem ter paciência, nunca passei por isso, e na verdade, eu não estou nem perto de ser um especialista, sou apenas um oficial de fronteira, não um mestre.

    - Para mim já é mais que o suficiente. – Anita o deixou acuado diante de sua sinceridade.



    Próximo capítulo:

    III – Integração e individualidade

    “- A origem da vontade nem sempre está associada ao fator desencadeante.

    - Quê? Repete.”

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    Mensagem por AsFar 23.08.12 19:31

    nossa muito legal rsrsrs parabens
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    Mensagem por Kaze 27.08.12 23:39

    IIIIIIIIIIIII.... esse Kaze é furada... não sigam os ensinamentos dele uahsauhsuahs
    vai acabar em hospital aushaushauhsuahs
    tou falando airiairairiariar

    Mto bom o capitulo... curto muito o jeito que você descreve a cena... é completamente inspirador...
    "Era impensável, inacreditável. Mal conseguia manter a respiração, sequer o controle dos meus atos. Minha mente lutava para compreender o que se passara aqui, entender e aceitar tudo isso como algo possível, passível de ser real."

    e tem mtas outras descriçoes que dá pra imaginar como é.. cada detalhe...
    admiro muito nos seus traballhos ;D

    parabéns auhsauhs
    espero o proximo cap =Q
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    Mensagem por Mr. Mudkip 28.10.12 18:39

    Mais um capítulo de SE. Apesar de não parecer, esse deu trabalho viu. Espero que curtam. Agradeço a quem está acompanhando.



    III – Integração e individualidade


    Kaze se retirou após a pressão feita por Anita. Ela era impulsiva, falava de seus sentimentos sem rodeios e isso com toda a certeza o espantou.

    - Acho que você o assustou. – disse preocupado.

    - Se ele está assustado, eu estou apavorada. – Anita deixou escapar uma lágrima de seus olhos, e me arrependi por não perceber os seus medos cada vez mais crescentes.

    - Não fiz vocês esperarem demais, não é mesmo?! – Kaze escorou-se na parede de ferro enegrecido, nos observando cautelosamente.

    - Kaze me desculpe, eu não deveria...

    - Esqueça. – ele balançou a cabeça negativamente. – Melhor continuarmos. Eu não iria ensiná-los?

    - Você está certo. – tentei cortar a tensão entre os dois, mas percebi como era inútil só de olhar para eles.

    - Então... – Kaze parecia buscar palavras para continuar. – Enquanto vocês não forem cadastrados pela central ou recrutados por algum dirigente ou com mais sorte um administrador, serão protegidos pelos oficiais de fronteira. De forma indireta, mas serão. Esqueci de mencionar isso anteriormente, para não se preocuparem com os outros.

    - Obrigado. – estava aliviado por isso. Felicia e Iann não estariam totalmente desamparados.

    - Agora irei lhes contar o restante do que eu sei e dos rumores que se espalham por aqui. – Kaze notou a feição levemente mais serena em nossos rostos e nisso esboçou um sorriso débil. – A origem da vontade nem sempre está associada ao fator desencadeante.

    - Quê? Repete. – não havia entendido nada.

    - Olha, digamos que a raiva seja o principal meio de fazê-lo agir. Embora a raiva não seja a origem disso, e sim um fator cravado obtido por alguma desilusão, uma tragédia, uma perda. Compreendeu?

    - Um pouco. – disse francamente.

    - Entender os motivos daquela emoção específica aflorar mais intensamente do que as outras os tornam mais interados de sua força. – Kaze tentava ser claro, mas um nó se formava em minha cabeça, e nada fazia sentido. – Nesse momento, a vontade presa em seus corpos está amplificando suas capacidades físicas e mentais para torná-los capazes de sobreviver aqui. Como um mecanismo de sobrevivência, puro instinto.

    - Ficaremos mais fortes? – Anita não acreditava que poderia fazer algo próximo do que Kaze mostrara há pouco.

    - Sim, mas tudo depende de como vocês lidarem com seus sentimentos. – Kaze estava assustadoramente sério naquele momento. – Se vocês não conseguirem, bem... Vocês verão com seus próprios olhos. Não é algo bonito de se ver. No entanto eu vejo mais em vocês. Acredito que possuem um diferencial. Prestem bem atenção agora, ok. – tentei me concentrar, mas Kaze como ele mesmo dissera não tinha experiência como tutor, e isso dificultava meu entendimento. – A maioria, apenas aprimora suas capacidades físicas e não acabam desenvolvendo habilidades digamos mais interessantes.

    - Como as suas? – Anita sabia como deixar Kaze acuado.

    - Bem... – Kaze não conseguia desviar o olhar de Anita. – Certo, certo... Na verdade, arrr... – ela o desconcertava. – O conjunto de sentimentos que compõem a personalidade de vocês pode criar habilidades únicas, como também aspectos peculiares, que se destaquem de todo o resto. A integração e individualidade. Essa doutrina antiga é repassada como um dogma.

    - Integração? – Anita questionou-se com cautela.

    - Individualidade... – refleti sobre o assunto. – Algo único.

    - Sim. Creio que vocês e seus amigos podem desenvolver essas habilidades, e quando as desenvolverem vocês serão alvo de ofertas. – Kaze levantou-se e seguiu em direção ao velho baú. – Acho que vocês presenciarão os gorados antes do que eu previa. – as cortinas desgastadas se retorceram com o vento forte que se abateu de repente. – Fiquem aqui e não saiam sob nenhuma hipótese.

    - Certo. – eu confirmei.

    Kaze carregou a pistola prateada de estranhas marcações e saiu.

    O vento revolto derrubava os pertences de Kaze pelo chão empoeirado, mas agora estávamos mais curiosos com o que se passava lá fora.

    - Ahhhh! – três homens de aspecto bestial cercaram Kaze, que caminhou tranquilamente como se não houvesse nada.

    Um deles repuxou os músculos fortemente alcançando uma velocidade incrível, indo de encontro a Kaze. Os dentes como presas cortantes arreganhavam-se a procura de carne. Parecia faminto e decidido a dilacerar Kaze como faz uma raposa a uma frágil lebre.

    Ele desativou uma das chaves de sua arma travando o gatilho na direção do homem. Sem pestanejar atirou alterando a gravidade. O homem foi prensado ao chão, sem conseguir se mover. Outro se adiantou lançando uma forte ventania em sua direção. Era ele quem criava a tempestade de vento.

    O vento atravessou-se sobre Kaze, mas ele conseguiu se manter firme. O terceiro homem flanqueou-se a Kaze arrancando-lhe sangue do braço com um pedaço de metal negro afiado.

    - Kaze... – Anita se ergueu para ajudar Kaze, mas eu a puxei de volta.

    - Ele disse para ficarmos. – ela desvencilhou as mãos e saiu. – Anita!

    Kaze viu Anita se aproximar, assim como os outros também. Ele tentava se esquivar dos ataques ágeis do homem enquanto ativava outra chave em sua arma.

    - Tape os ouvidos. – Kaze ordenou. Anita se apressou a colocar as mãos sob os ouvidos.

    - Ahhhh! – um berro estridente se seguiu do homem preso por Kaze, sendo dilacerado pela pressão crescente. O sangue jorrava para todos os lados em uma cena aterrorizante. Anita ao tapar os ouvidos sem perceber fechara os olhos e não vira tal cena.

    Não consegui suportar aquilo, e meu estômago revirou. O ácido subiu até minha boca em um gosto intragável e o líquido amarelado espalhou-se pelo chão. Minhas mãos suavam e tremiam. Não pude ver mais nada. Somente o vômito a minha frente, com seus pequenos pedaços ainda não digeridos do meu almoço, boiando no fluido nojento.

    Era perceptível. A luta não acabara, mas eu não conseguia, não poderia me atrever a ver ou ajudar. Um fraco, covarde. Incapaz de continuar.

    - Kaze! – a voz de Anita soou desesperadamente e eu imóvel, incapaz de qualquer coisa.

    Um vulto atravessou a cortina de encontro à parede de ferro. O corpo embolou-se no pano encanecido remexendo-se por algum tempo e aquietou-se. O marrom pálido da cortina ganhava manchas vermelhas tenebrosas, mas ainda assim não conseguia me mover.

    - Ma... – as emoções além do limite me presentearam com um breve descanso. Um apagão. A inconsciência me atingiu.

    ***

    - ...isso é incomum Master. – eu conseguia ouvir a voz aquiescida de Kaze próximo a mim. – Gorados trabalhando em grupo, quase como se tivessem algum grau de consciência.

    - Alguns casos foram reportados. Estamos cientes disso, por isso, continue na vigília. – quem quer que fosse a pessoa a falar com Kaze, estava em videoconferência.

    - Certo. – Kaze assentiu voltando-se até mim.

    - O que foi aquilo? – disse com o coração devastado.

    - Aquém de mim saber o que era. – Kaze estava tranquilo como se nada houvesse acontecido. Como se tudo o que vi fosse nada. – A Central fala em um vírus que consegue se associar aqueles que perdem a vontade. Nada mais.

    - Aquilo foi terrível.

    - As primeiras vezes sempre são. Passei muitas noites assoladas com pesadelos. – Kaze me ofereceu um pouco de água salobra, ao qual custou a ser aceito pelo meu estômago.

    - Anita. – disse de súbito.

    - Estou aqui. – ela estava encolhida atrás do baú de Kaze. – Eu... Es... Estou aqui... – percebi alguns gemidos doídos de sua parte, e então entendera tudo. Ela também vira.

    - Vocês passaram por um batismo de sangue pior do que deveria ser. – Kaze aprendera a ser duro, e não havia outra maneira de se lidar com tudo isso. – Apesar disso, a vontade dos dois apenas cresce e se modifica. Sei que não é o momento, mas jamais vi algo assim.

    - Eu tamb... ém. – Anita respondeu com certo sarcasmo diante da falta de sensibilidade de Kaze. Ela não o culpava, só não entendia, nem eu.

    2 semanas depois

    Após o batismo de sangue que Kaze nos dissera, sofremos mais três ataques semelhantes. Todos terminados com o extermínio dos chamados gorados. Seres humanos que perderam a vontade e foram infectados por vírus estranhos. Eles modificavam a estrutura física deles para torná-los mais agressivos, com um instinto assassino, sedento não por sangue, mas pela vontade presa em nós.

    Esse era o trabalho de um oficial de fronteira, evitar que esse mal se espalhasse até a Central. Um fardo pesado demais para mim e Anita. Ele permanecia realizando suas atividades, enquanto tentávamos assimilar a nova situação.

    Nesses dias permanecemos calados e isolados uns dos outros. Kaze fora compreensivo, mas nesse lugar chamado In Série, não havia espaço para isso. Passamos a ajudar com a comida, a limpeza, coisas simples, mas era o máximo que poderíamos fazer naquele momento. Tentávamos nos manter limpos, mas o cheiro já não era mais agradável. Não havia muita água, nem comida, mas ao menos estávamos suportando, por assim dizer.

    Num desses dias, Anita quebrou o silêncio.

    - Será que os outros estão bem? – me fazia essa pergunta todo o tempo, assim como se tínhamos chance de voltar pra casa.

    - Espero que sim. – respondi sem esperança. – Kaze não falou que os gorados se concentram nas terras de aço negro? Eles já devem estar na Central. – tentei ser otimista, mas minha voz cansada não parecia disposta a confirmar.

    - É mesmo... – Anita tentava sovar a massa de pão, mas não tinha muita habilidade com a cozinha. – Eu sinto que estou mais forte, mais disposta, e você?

    - Infelizmente sim. – não queria ser capaz de fazer algo como Kaze fazia tão insipidamente. Matar. Eu seria capaz? Mesmo que fosse para não morrer...

    - É... – ela massageava a massa quebradiça tentando tirar os caroços de farinha.

    Kaze havia saído para comprar alguns itens no mercante acima das colinas negras. Não saíamos da casa, exceto em sua companhia. Sabíamos que de nada adiantaria, pois os gorados invadiriam facilmente se aparecessem.

    - Kaze. – um homem gritou do lado de fora.

    Observamos timidamente pela fresta da janela um homem jovem, de pele negra e resplandecente chamar por Kaze. Vestia um blusão de couro branco por cima da calça surrada cheia de pequenos carrapichos verdes.

    - Kaze. – ele atravessou a cortina envelhecida dando de cara com Anita. – Onde está Kaze e quem são vocês?

    - Ele... saiu. – respondi temerosamente.

    Ele voltou-se para mim. Tinha um rosto largo, pomposo e amigável. Tinha um símbolo de três círculos preso ao blusão, e reconheci aquele símbolo da arma de Kaze.

    - Foi ao mercante. – Anita limpou as mãos na toalha engordurada antes de cumprimentá-lo com um aperto de mãos. – Sente-se. Ele já vai voltar. Me chamo Anita e este e Lucas, sou... Não sei bem o que eu sou, na verdade. – ela riu diante da resposta vaga.

    Ele estranhou a gentileza ao qual deve ser tão incomum num lugar como esse, mas não recusou o cumprimento.

    - Não sabia que Kaze recebia convidados em seu humilde lar. – ele sentou-se enquanto Anita lhe oferecia água salobra, afinal era o que tínhamos para oferecer. – Aqueles olhos puxados sempre me surpreendem. – ele aceitou a água de bom grado.

    - Não recebemos visitas com frequência. – Anita parecia feliz com um novo rosto naquele local hostil.

    - Pelo menos que não nos queiram como jantar. – completei.

    - Sei bem como é. – ele disse sorridente. – Estamos tentando resolver isso.

    - Olha quem finalmente apareceu. – Kaze carregava um saco de palha ao atravessar as cortinas e dar de cara com o novo visitante. – O que o nobre Administrador Coal veio fazer nesse lugar? – Kaze ajoelhou-se diante dele aguardando até que fosse liberado do cumprimento.

    - Administrador? – Anita aquietou-se ao ver Kaze se curvar a ele.

    - Esses seus amigos de onde vieram? Estou curioso, extremamente curioso. – nos apressamos a imitar Kaze. Ele apenas riu de nossa afobação. – Eles são bem interessantes, olhos puxados.




    Próximo capítulo:

    IV – A melhor coisa em mim

    “- O que eu espero de vocês nem eu sei.”




    Última edição por Mr. Mudkip em 30.10.12 18:55, editado 1 vez(es)
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    Mensagem por MarksOlks 29.10.12 21:42

    Nossa Você Tira Onda Cara Esperando O Capítulo 4!
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    Série experimental [14 +] Empty Re: Série experimental [14 +]

    Mensagem por Mr. Mudkip 31.10.12 10:19

    Fazer essa fic tá mais difícil do que eu imaginava, mas tá saindo. Espero que curtam. (To usando o nick do povo aki da shiny tá, se não se importam...). E Obrigado Marksolks por acompanhar.


    IV – A melhor coisa em mim

    - Ora, levantem-se. – num movimento brusco, Coal derrubou o copo no chão. – Apenas ele me deve. –Coal apontou para Kaze e vi como ele se ofendera com aquela provocação vaga. – E então olhos puxados... De onde eles vieram?

    Kaze hesitou, mas se recompôs instantaneamente. Anita recolheu o copo, no entanto, foi incapaz de interromper o martírio silencioso criado por Coal. Ela permaneceu imóvel enquanto Kaze relatava os acontecimentos de nossa chegada em In Série.

    Coal demonstrou certo desdém na maior parte do tempo, embora eu percebesse que às vezes nos observava de relance. A pose amigável de Coal permanecia intacta, mas sua presença ali causou desconforto, principalmente em Kaze.

    Nesse período de convívio com Kaze, não o vira ser afetado por nada. Aquele homem tão amistoso mexia com ele de uma maneira aterradora.

    - Vou levá-los. – Coal disse ao final do relato de Kaze. Estávamos sendo recrutados, simplesmente nos levaria sem se importar com a nossa opinião.

    - Eu sei. – Kaze olhou para Anita num instante. Logo depois saiu.

    O copo rolou pelas mãos de Anita e percebi a perplexidade estampada em seu rosto.

    - Se eu não quiser ir. – Anita foi capaz de se impor. Eu não me atreveria. Algo naquele homem me impedia.

    - Ele não se opôs. – Coal ajeitou o blusão e se levantou. – Vamos então. – Para ele o assunto havia se resolvido.

    - Eu já disse... – Anita alterou a voz para uma leve ameaça. Ela não estava disposta a seguir ordens.

    - Eu também já disse. – Coal encarou Anita, mas ela não se intimidou. – Você ainda não pode comigo menina.

    - Eu sei disso. – Anita retorceu as mãos no pano engordurado, angustiada pela humilhação. – Mas...

    - Vamos. – Coal disse num ultimato violento.

    Ele aparou o copo com os pés e o quebrou para demonstrar sua impaciência.

    - Certo. – eu trouxe Anita para perto de mim. Mais uma palavra e ela estaria em sérios apuros.

    Coal assentiu pela minha atitude prudente. Ele se retirou permitindo que conversasse com ela por um momento.

    - Anita nós não temos escolha. – disse o óbvio.

    - Eu só não... – Anita derramou lágrimas desesperadas. – O que importa... Não é mesmo?

    - Ele te traz segurança. – novamente lancei o que era evidente.

    Eu também sentia que podíamos confiar em Kaze, mas a vinda de Coal ruiu qualquer possibilidade de continuarmos com ele. Segundos de martírio se sucederam como horas, onde mais lágrimas surgiam até que Anita se acalmasse.

    - Agora eu posso ir. – Anita enxugou o rosto com os dedos trêmulos e seguiu até a porta. – Ele me traz mais do que isso. – ela abaixou a cabeça, pigarreou um soluço doído e deixou o pano cair devagar por suas mãos. – Vamos Lucas.

    - Vamos. – peguei em sua mão macia e quente. Juntos, nós escolhemos ficar e juntos fomos forçados a deixar o nosso primeiro refúgio nesse mundo tortuoso.

    ***

    Após esse embate perigoso, fomos escoltados por Kaze e Coal além das terras de aço negro que se desfaziam em campos de capim dourado. Tufos de fumaça serpeavam no horizonte feito serpentes prestes a avançar contra suas presas. Cogumelos azuis cresciam nas frestas dos troncos apodrecidos, e pequenos roedores zanzavam a nossa volta tentando chamar a atenção.

    - Essas pestes não tem jeito. – Coal resmungou ao notar que os roedores catavam os carrapichos presos em sua calça.

    - Acho que até aqui seja o suficiente. – Kaze evitou olhar diretamente para qualquer um de nós preferindo observar os roedores atrevidos se alimentarem dos carrapichos.

    - É verdade. Pode voltar olhos puxados. – Coal continuou reclamando dos roedores, mas nada fazia para afastá-los.

    Kaze passou por nós sem dizer uma palavra. Percebi um olhar breve para Anita, somente isso. Coal voltou a caminhar com os roedores em seu encalço, arrancando os carrapichos que conseguiam.

    Ficamos parados olhando um para o outro sem se atrever a olhar para trás. Sem alternativas. Forçados a essa situação.

    - Me desculpe. – há tempos essas palavras permaneceram engasgadas em minha garganta.

    Nesse tempo, o que me manteve forte foi à companhia de Anita. Ela funcionava como uma ponte de ligação com a minha família. Com ela, eu tinha esperanças de que os veria novamente. Meu pai, mãe e minha irmã. Minha família, eles são a melhor coisa em mim e agora Anita preenchia esse espaço. De forma incompleta, isso é verdade, mas fazia uma diferença enorme ter algo a que se agarrar a não ter nada.

    Já eu. Eu sentia o peso de ser um estorvo para ela. Mesmo assim ela não jogou isso na minha cara, pelo contrário tentou ocultá-la para me poupar de mais sofrimento.

    Anita negou as desculpas e acariciou minhas bochechas carinhosamente. Mesmo abatida ela parecia mais forte do que eu. Sua vontade me causava medo. Ela era tão bela, sensível, só que muito inconsequente. Ao menos nisso eu a ajudava.

    - Melhor irmos. – ela seguiu pela grama amarelada evitando pisar nos roedores famintos.

    ***

    Agora eu conseguia ver o que Kaze tentara nos ensinar. Se não tivéssemos perdido tempo com nossos temores, quem sabe agora eu teria o controle da minha vontade, das minhas escolhas e eu sabia também, infelizmente. Eu somente descobriria ao deixar Kaze.

    Eu guardava minha força, o que me mantinha vivo na vontade de ter minha família de volta. Jamais imaginei algo tão poderoso. Só agora eu entendia, e eu sabia o motivo. Sentia que estava se acabando. Tinha um pressentimento. Eu não iria voltar, mesmo assim continuei ao lado de Anita, desta vez sem fraquejar.

    Ao terminarmos de subir mais uma colina íngreme, pude notar um muro de pedras erguido em uma campina plana. A grama amarela crescia por entre as pedras a procura de um mísero pedaço de terra para se manter viva. O portão de madeira preso a alças de metal negro se abriu rapidamente assim que fomos avistados.

    Um pequeno esquadrão marchou em nossa direção. Coal continuou caminhando normalmente e então fizemos o mesmo. Eles se dividiram em formação, dando passagem para nós. Homens e mulheres jovens vestidos como guerreiros se curvaram num claro sinal de lealdade a Coal.

    - Admin. Coal! Admin. Coal! – um rapaz franzino de voz esquisita carregava uma papelada embaixo dos braços, e em seu desespero para conseguir a atenção de Coal, derrubou tudo em um balde cheio com uma calda castanha gosmenta. – Ahhhh!

    Coal ignorou o fato, apenas acenava para algumas pessoas em volta. Eles nos olharam com piedade, mas logo já estavam fazendo suas atividades.

    Atrás do muro de pedras vivia uma comunidade de âmbito rural. As construções, vestimentas, equipamentos, tudo muito artesanal. Os moradores trabalhavam com alguns acres de terra para plantação ou criação de animais. Eram plantas e animais estranhos, bem diferentes dos nossos.

    Alguns mercantes ofereciam mercadorias extravagantes, prometendo dezenas de vantagens a quem comprasse seus produtos. Crianças passavam por nós realizando verdadeiras façanhas, com seus saltos e estripulias de fazer inveja aos acrobatas do Cirque du Soleil.

    Entramos em um corredor de acesso a um salão onde dois homens jogavam cartas com certo desânimo. Um deles estava escorado sobre a mesa, permitindo que o outro visse suas cartas. Ele tinha os cabelos trançados para trás, pele levemente queimada de sol, um rosto frouxo e olhos negros de aspecto cansado. Vestia uma camiseta amarela feita de capim dourado e uma bermuda na altura das canelas. O outro tinha uma barbicha no contorno do queixo, o cenho encurtado e com marcas de expressão. Era moreno com diversas cicatrizes espalhadas pelo corpo. Faltava-lhe uma mão ao qual no lugar ficava agasalhado com um pedaço de couro amarelo. Vestia um calção preto e um colete amarelo também de capim dourado.

    - Ora. Melhorem essas caras. – Coal postou-se a frente da mesa. – Zilbra, Sasori, eu trouxe alguns presentes. Cortesia dos olhos puxados.

    Eles nos observaram de relance.

    - Não me parecem grande coisa. – o homem de aspecto cansado disse sem vigor.

    - Vocês acham? – Coal nos olhou como se não acreditasse nisso. – Será que eu me enganei?

    - A menina poderia virar sua guerreira, agora ele nem para trabalhar no campo serve. – o homem repousou o braço sem mão sobre a mesa. Sua voz grave e potente resoou pelo salão.

    - Vai nos tratar como uma mercadoria qualquer? – Anita não conseguiu se segurar. – O que você quer de nós?

    - O que eu espero de vocês nem eu sei. – Coal tratou de mostrar seu rosto amigável que a essa altura me era completamente falso.

    Anita estava irada com a displicência de Coal em relação à opinião dela e não tinha o mínimo receio em mostrá-lo.

    - Se não quiser a garota como sua guerreira, posso te fazer esse favor. – o homem de vistas cansadas a olhou com ganância. Eu tinha minhas suspeitas do que ser uma guerreira significasse, e temi pela integridade de Anita. – Ela tem seu valor. Está um pouco desnutrida, mas nada que um pouco de banha não dê jeito. Os carretus estão bem gordos esse ano e não seria um desperdício gastá-lo com ela.

    - Sasori. – Coal coçou a cabeça, ligeiramente irritado com o rumo da conversa. – Parece que me enganei dessa vez.

    - E quando você não se engana Admin. Coal? – Zilbra riu, no entanto se irritara num instante. – Ainda mais se tratando daquele oficial das terras negras. Jamais confiei nele.

    - Já que não servimos para nada, poderia nos deixar voltar. – Anita estava prestes a explodir em fúria.

    - Não funciona assim. – Coal suspirou profundamente. – Peço desculpas pelo o que eu fiz.

    - O que você fez? – eu senti arrepios em minha nuca.

    Coal estava angustiado. Sua face sempre amigável simplesmente desapareceu.

    - Eles não servem para mais nada? – Coal insistiu.

    - Não. – Sasori disse com tamanha convicção que não tive dúvidas de que éramos inúteis, descartáveis.

    - Então... Mate-os. – Coal disse por fim.


    Próximo capítulo:

    V – Apenas humano.

    “Quem você pensa que é?”
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    Série experimental [14 +] Empty Re: Série experimental [14 +]

    Mensagem por Mr. Mudkip 25.11.12 12:32

    Finalmente consegui mais um capítulo de Série Experimental - SE. Fiquei com uma baita indecisão, pois tinha dois caminhos a seguir agora, ambas escolhas difíceis de fazer para o desenvolvimento, e acabei decidindo pela mais inusitada talvez... Bem, espero que curtam. Comentem e até a próxima!


    V – Apenas humano


    Há cerca de dez dias alguns viajantes nos deram notícias sobre a presença de uma névoa fina e úmida no entorno do canal onde a correnteza do rio era mais forte e ali se estagnou. O rio abastecia a nossa gente com água potável, um artigo raro nestas terras escassas de recursos naturais. Nossa água de boa qualidade inevitavelmente nos tornava alvo de constantes ataques.

    Com o inverno se aproximando, os nevoeiros começavam a surgir feito uma muralha de vapor branco, enigmático e perigoso; uma ameaça constante para nossas defesas, forçando-nos a nos organizarmos em questão de minutos contra invasões. Por essa razão, nossos inimigos sempre pensavam duas vezes antes de tentar um ataque. Os extenuantes treinamentos de composição dos grupos de infantaria serviam ao seu propósito. Dificilmente seríamos pegos desprevenidos com a guarda baixa. Frente as nossas defesas astutas derrubamos exércitos poderosos, mesmo com as claras vantagens do elemento surpresa gerado por esses nevoeiros.

    O estado de alerta fora acionado e pela conjectura atual fomos enviados pelo administrador em uma missão de reconhecimento, tudo porque a vazão de água para irrigar as plantações havia diminuído consideravelmente e suspeitas surgiram pelo fato recente.

    - Não gosto desta fumaça branca. – disse ao vulto enegrecido a minha frente. – Nunca consigo ver nada.

    - E o que me importa? – a figura quase espectral soltou um atiro de escárnio.

    - Ao menos não preciso ver essa sua cara feia. – respondi na mesma moeda.

    - E por acaso eu preciso ouvir seus choramingos de mulherzinha? - sempre recebia de volta suas interrogações irritantes.

    - Calem-se vocês dois! – pela esquerda alguém atravessou nossas provocações.

    Não era proposital essa minha mania de revidar, mas ficar andando nesse chão lamacento, ouvindo apenas passos dissonantes até chegar a nosso destino me desagrava. Gostava de barulho, gente, música, comida, mulheres, ah, belas mulheres, e claro todas as riquezas a minha disposição. Enfiar-me nesse lamaçal não é a vida que eu mereço. Enquanto eu reclamava internamente desta vida ingrata, negrumes esfumaçados começaram a se desfazer com a nossa passagem. A bruma se dissipava ao centro do nevoeiro, permitindo ver o rio com clareza.

    - Finalmente. – estava cansado daquele mundo completamente branco.

    - Ainda chorando? – Evil enchia seu cantil com calma, mas sua alegria era implicar comigo, não conseguia reprimir isso, nem eu.

    Evil se tornou meu parceiro quando cheguei às terras de céu prateado. No começo, competíamos em tudo na escola de oficiais, mas sempre fomos cúmplices em batalha. Daí surgiu uma amizade estranha, advinda da rivalidade que sempre tivemos.

    Ele sempre saía em missão com uma mochila de couro de carretus repleta de itens de sobrevivência. Até hoje teme um incidente semelhante como os da terra de aço negro, um lugar ingrato repleto de gorados e patifes. Tivemos muita sorte naquele dia. Nossas vontades conseguiram vencer a deles e ficamos mais fortes, no entanto perdi algo precioso, uma habilidade ao qual eu me agarrava firmemente.

    Eu só sabia de uma coisa. Mataria e morreria por ele, não tinha dúvidas. Minha vontade se atiçava com ele ao meu lado, e nem sei o que aconteceria se um de nós morresse.

    Hoje ele vestia uma blusa preta com o emblema de segundo oficial. Duas criaturas angelicais de asas prateadas de mãos dadas, o símbolo mor de nosso Administrador. Usava calças de um azul desbotado e a bota enlameada preta. Tinha o cabelo castanho rapado nas laterais, a pele branca meio pálida e sem brilho, olhos negros e astutos e um ar de desprezo, quase como se detestasse tudo o que via, e por essa razão o chamávamos de Evil. Durante as missões, ele colocava um brinco de argola prateada na orelha esquerda, algo que somente ele sabia de seu significado. Eu tinha meus palpites, mas ainda não descobri o que ele esconde de especial nesse item.

    - Não tanto quanto você chora quando está bêbado. – deitei na grama banhada de orvalho, observando o céu nublado e esbranquiçado.

    - Vocês dois são realmente insuportáveis. – Softnyx deitou-se ao meu lado com os braços cruzados para trás.

    Desde criança, Softnyx se mantinha afastado das pessoas, insistia em evitá-las, mas ultimamente ele tem conversado muito conosco, embora nem sempre de bom grado. Ele era ossudo e meio magrelo, mas tinha os braços e pernas fortes. Alto, esguio e de porte elegante, não parecia em nada um soldado de alta patente. Quem sabe se encaixasse melhor na aristocracia tão protegida de nosso Administrador? Talvez por manter um pensamento ágil, tenha contribuído para ele estar no comando de nossa infantaria.

    - Não comecem de novo, por favor. – Softnyx era impaciente. – Descansem um pouco. Essa névoa com certeza não é natural. É quase certo que teremos algum embate. – a intuição de Softnyx era infalível. – Só que tem alguma coisa me incomodando...

    - Tem alguma ideia do que seria? – Evil fechou o cantil e o mergulhou na água para lavá-lo.

    - Sim e não... – no exato momento das suas explicações detalhistas, vultos se esgueiraram pela névoa na outra margem do rio.

    Dois jovens de vestimentas finas e bem costuradas escoltavam uma dama de cabelos mais dourados do que as campinas férteis controladas pelo Administrador Coal. Ela usava roupas curtas, coladas em seu corpo bem delineado e firme. Apesar da pouca idade, os primeiros traços de mulher lhe sobressaiam de seu busto avantajado e nas curvas provocantes. Embora estivessem claras as diferenças, ela me lembrava das mulheres com quem me divertia nos bares. Ela mantinha uma postura altiva e elegante, sem vulgaridades aparentes, e isso me atraiu ainda mais.

    Ela cultivava uma sedução natural, e não o fazia para provocar com apelos sexuais. Era inegável seus encantos e juventude e naquele instante passei a cobiçar aquele corpo de beleza carnal.

    Enquanto eu permanecia encantado pela beleza avassaladora da moça, os rapazes resolveram agir. Um deles acenou tolamente, enquanto o outro o repreendia. A bela jovem, as costas dos garotos prestes a se tornarem homens, aguardava imóvel eles decidirem o que fazer. O jovem mais ajuizado tinha o porte atlético e corpo mais robusto que o outro que carregava um estranho objeto de vidro cobrindo os seus olhos. Eles eram morenos, de aspecto cansado e exalavam o mesmo tédio que me consumia.

    - Se apresentem! – Softnyx gritou com clareza para eles.

    Eles cochicharam algo e depois pareceram indecisos.

    - De onde vieram? – eu não estava acreditando que após todos esses anos, novos forasteiros apareciam em In Série.

    - Senhor, creio que sejam nuklats. – Nuklats, os assim chamados estrangeiros vindos de outras dimensões, aos quais poderiam vir a se tornar muito valiosos ou inúteis como guerreiros ou conselheiros da Central ou para um Administrador.

    - Não pode ser... – Softnyx esboçou uma feição preocupada com a pronúncia de tal palavra. – Como o Administrador Rafael receberá essa notícia?! – ele já sabia de quem se tratavam, apenas precisou da confirmação dita em alto e bom som.

    - Bem, caras... – o jovem de ações ousadas e insensatas resolveu começar a falar. – Sou o Cooper, essa é a Felícia e aquele mal humorado ali é o Hugo. Aconteceu tipo assim... – ele apontou para o alto e depois levou a mão ao queixo, tentando explicar, sem sucesso. – Viemos parar aqui do nada, sabe e... Bem...

    - Vocês não sabem. – Softnyx completou a frase.

    - É... – ele confirmou.

    - E então senhor? – Evil era o único com patente suficiente para discutir um assunto tão importante dentre o grupo formado para essa missão.

    Eu não passava de um batedor de certo talento, os demais eu mal conhecia. Softnyx era um general respeitado por seus feitos, e apesar de ser o mais jovem entre nós, foi o responsável por grande parte das batalhas bem sucedidas de nosso Administrador. Evil, meu bom amigo, lutava para ascender em um posto à altura de suas habilidades, mas devido à inconstância de sua vontade e necessidade de alguém para protegê-lo tornavam essa tarefa quase impossível de se concretizar. Ele não tinha as características que nosso Administrador admirava em seus aliados mais próximos, tais como as de Softnyx.

    Evil e Softnyx conversaram por alguns segundos e rapidamente decidiram o que fazer.

    - Somos guerreiros do nobre Administrador Rafael dois anjos das terras de céu prateado. – Softnyx iniciou seu discurso repleto de formalidades. – Vocês serão amparados por nosso nobre Administrador se assim o desejarem.

    Felícia se adiantou aos garotos e vi sua beleza arrebatar meu coração. Sentia-o bater com tamanha força que doía em meu peito. Poucas vezes vi uma bela púbere de encanto tão exuberante.

    - Vocês nos garantem proteção? – sua voz saía doce de seus lábios vermelhos e provocantes. Queria tocar aqueles lábios, sentir sua pele macia e branca feito leite.

    Hugo não parecia contente com a decisão da garota de intervir.

    - Sim. – Softnyx foi direto. – Gashael e Sora os levarão em segurança até a presença de nosso Administrador. Disso eu garanto.

    Fiquei satisfeito em ter meu nome citado para levar a garota.

    - Senhor, preciso de Gashael aqui para me assistir. – Evil retrucou.

    - Marksolks pode fazer isso. – suspeitei que Softnyx queria nos separar pelo resto da missão. Afinal, com isso não ouviria mais das nossas provocações vazias que tanto lhe chateavam. – Sora, faça a mágica acontecer e os traga para cá.

    - Sim senhor. – um de nossos guerreiros se prontificou a erguer os braços de frente para o rio. Já o vira outras vezes frequentando os bares do núcleo, no entanto jamais chegamos a ser apresentados. Vestia o uniforme clássico do Administrador Rafael dois anjos, um macacão de couro preto em detalhes prateados com o símbolo de duas figuras angelicais desenhadas em suas costas. Carregava uma espécie de foice dividida em pedaços colados por parafusos brancos, permitindo ajustá-la a necessidade de Sora. Como a maioria dos habitantes das terras de céu prateado, Sora tinha uma pele branca como o gesso, embora não houvesse o tom apagado comum, e sim uma resplandecência, que lhe destacava os olhos amendoados. Os contornos de seu rosto eram travados, o que lhe aumentavam a idade, embora isso lhe trouxesse uma beleza exótica.

    Passados alguns instantes de frente para os forasteiros, Sora fez surgir linhas negras entre as margens do rio, empolgando o garoto chamado Cooper.

    - Véi, o que isso?! – ele cutucou o dedo na estrutura enegrecida. – Posso fazer algo parecido?

    - Vamos logo imbecil. – Hugo chutou as pernas de Cooper com certa violência deixando Felícia com raiva.

    - Deixa ele em paz seu bruto. – Felícia lançou um tapa nas costas de Hugo e ele aquietou-se instantaneamente.

    ***

    - E então? – Cooper tentava a toda hora puxar conversa conosco. – Posso fazer aquilo? Deve ser muito louco.

    - Cooper... – Felícia tentou impor um pouco de juízo no garoto, mas minutos depois ele já estava fazendo mais perguntas.

    Fomos orientados a permanecer em silêncio até chegarmos ao núcleo. Caso Sora não estivesse me acompanhando os ajudaria a permanecer vivos, embora isso não fosse o bastante para me manter próximo a Felícia. Assim que nosso Administrador vê-la, vai querer tê-la para si. Ele também era fascinado por belas jovens, comprovado pela alta concentração delas dentro de sua sociedade aristocrática.

    - Sugiro que não falem demais frente ao nosso Administrador. – Sora disse após perder a paciência com Cooper. – Talvez nem tenham a chance de chegarem lá vivos. – ele evidenciou a foice em suas mãos como forma de intimidação. – Quem sabe no meio do caminho, gorados ou agentes da Central nos ataquem? Seria uma tragédia.

    - Acho que mesmo se arrancarem a língua dele fora, ele não para de falar. – Felícia disse de forma tão descontraída, que cheguei a duvidar que tivesse entendido as intenções de Sora.

    - Podemos testar? – brinquei, evidenciando um leve sorriso para ela.

    - Ele não faz mal a ninguém. – ela deu de ombros. – Perder tempo com frivolidades, para quê?

    - Ele com certeza faz mal aos meus ouvidos. – Sora ainda estava aborrecido.

    - Ora, deixemos disso não é mesmo? – disse a Sora mostrando meus dentes meio amarelados e limpos. – Jogar o tempo fora conversando nos fará chegar mais rápido.

    - Quem você pensa que é? – Sora ergueu uma sobrancelha, sentindo-se meio acuado. – Temos de seguir as ordens de Softnyx.

    - Eu não disse nada demais... – não quis começar uma discussão. Fora ele quem desobedeceu às ordens em primeiro lugar. – E nem pensei em nada.

    Felícia balançou a cabeça disfarçadamente. Hugo permanecia em silêncio, já Cooper não conseguia ficar calado. Se continuasse assim, ele iria ser morto em pouco tempo, talvez antes que chegássemos ao núcleo, Sora cumpriria sua ameaça.

    - Esse lugar é assim tão perigoso quanto dizem? – mesmo com as advertências e intromissão de Felícia, ele não enxergava os perigos a sua volta. Embora ele fosse irritante, não desgostava dele, passei até a ter certa empatia por sua pessoa. Quem sabe isso não seja influência de Felícia? Seria realmente mais fácil chegar até ela conquistando sua confiança, mas ela era esperta. Nós dois jogávamos um com o outro de forma sutil.

    Ela me observava discretamente. Escondia o rosto em seu cabelo dourado, e espionava cada trejeito, estudando-me. Eu era mais direto e incisivo. Demonstrava meu interesse por ela de forma tão explícita que Hugo se incomodou. Sora fingia não notar, já Cooper estava ocupado demais fazendo perguntas a todo o momento e foi o único a não perceber.

    Essa troca de olhares se estendeu por toda a viagem. Quase sempre eram colinas altas cobertas de névoa úmida e gélida, deixando o céu opaco e em tom cinzento. Mais próximo ao núcleo, o relevo foi se achatando. Alcançamos a zona de planaltos, onde a grama era verdíssima e encharcada de água. Árvores de tronco retorcido cresciam em alguns pontos, onde os gatts, raposas de pelo amarelo pálido se ocultavam em alguns buracos abaixo das raízes, e os helfs, pequenos morcegos de tez marrom esquálida sobrevoavam nossas cabeças deixando Felícia um pouco amedrontada.

    Insetos eram raros nesse lugar. A névoa funcionava como um repelente natural dessas pestes, que por essa razão se concentravam nas terras de aço negro, repleta de carcaças para se alimentarem e na Central, alimentando-se do lixo deixado nas fronteiras. As terras mais cobiçadas em In Série eram essas controladas por nosso Administrador, seguidas pela da Central, e logo após as controladas pelo Administrador Coal. A Central controlava vinte e três áreas por meio de seus dirigentes, algumas próximas às fronteiras usadas apenas para despejar lixo. Pelo que sabíamos, havia mais doze áreas, essas nas mãos dos outros administradores. E por último, duas terras abandonadas, as terras de aço negro e as assoladas por chuvas ácidas, mais ao norte.

    - Estamos chegando ao núcleo. – disse.

    Uma muralha de mármore branco se estendia de leste a oeste. Uma imensidão de pedras empilhadas ordenadamente de forma magistral. Estátuas de anjos brancos e negros se alternavam entre alguns trechos da muralha e no centro, um portal de aço prateado, desenhado com dois anjos entrelaçados.

    - A muralha divina. – Sora fez questão de apresentar um de nossos orgulhos. – Nosso administrador faz questão de manter pessoas somente para raspar o musgo que cresce nas pedras e lixá-las para ficarem sempre como novas.

    A possibilidade de ver tudo àquilo novamente sempre me alegrava. Era reconfortante poder retornar para casa após essas missões sempre tão perigosas. A visão angelical das estátuas me lembrava de como nosso Administrador era poderoso. Sua força era considerada semelhante ao do Administrador Central. Rumores contavam que nosso Administrador fizera um pacto com seres superiores, conhecidos como os Deuses para obter tamanho poder, mas esses boatos surgiam somente pela forma singular de sua vontade.

    - Esse lugar é assustadoramente lindo. – Felícia observou o anjo negro e fez um sinal com as mãos, tocando a testa, o peito e depois os ombros.

    - Dois anjos... – Cooper coçou o queixo. – Esse Administrador sabe mesmo fazer uma bela entrada como cartão de visitas. Esse dois anjos deve ser muito massa, véi.

    - Cala a boca. – Hugo estava impressionado com a construção, mas fez questão de esconder isso. – É legalzinho, só isso.

    - Sugiro que sejam educados e não menosprezem as obras de nosso Administrador. – cochichei especialmente para Hugo.

    - O que ele pode fazer com a gente? – Cooper pela primeira vez fez uma pergunta oportuna.

    Sora permaneceu calado, mas eu não contive as palavras.

    - Não hesitaria em mandá-los para conhecer a terra dos mortos. – disse friamente.

    Felícia recuou o passo de imediato, piscando para mim. Cooper ajeitou o objeto de vidro em seu rosto e coçou o queixo, riu e passou as mãos sob o cabelo bagunçado. Hugo continuou andando, e jurei ter visto um sorriso em seu rosto. Esses nuklats eram muito abusados ou muito idiotas. Não faziam ideia do que os esperava.



    Próximo capítulo:

    006 – Boa noite, tenha uma boa viagem.

    “Todo mundo chora pela morte dos seus.”

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