Bom, ai está a parte final de Reis e réus, espero que curtam.
Mr. Evil, essa fic surgiu na minha cabeça ouvindo a música Reis do novo cd da Maria Gadú, e resolvi escrever, nem pesquisei nada ou procurei algum tema pra me inspirar. Tem até um trecho da música na fala de um personagem, kkk. Era pra ser uma one-shot e na verdade é, só dividi em três partes pra enrolar um pouco por não ter o que postar enquanto não termino meus roteiros. Bom é isso.
Estou terminando alguns roteiros de fics e one shots e em breve eu posto, ok. As fics serão "Pokémon Ree laii", retornando a história e "Série experimental", uma fic mais descompromissada e com menos fantasia e mais realidade, e a one-shot é "Expedição ao Monte Prata", mostrando a primeira grande descoberta arqueológica de Isis Gast, antes de se juntar a Julliane Cerule na fic Pokémon Ree laii, e falando nessa fic e em Mitologue, minha preguiça de refazer os roteiros está desaparecendo e irei continua-las em breve com alterações, é claro.
Até breve! E comentem.
REIS E RÉUS
Parte III
Enclausurada neste castelo anos se passaram, restando como mero capricho observar pela clareira da porta e somente aguardar. Esperar o momento, o instante em que surgirá à sombra do meu amado rei para salvar-me de minha própria monotonia.
Nosso prometido herdeiro já caminhava para todo canto, curioso para descobrir o mundo, desbravar as fronteiras e desfrutar de experiências únicas, obrigando a estar alerta a todo instante. Era certo, cuidar de uma criança exigia demasiada vigilância, consumindo meus pensamentos apenas para ele, mas... Nos poucos momentos de descanso, eu me conectava a Henrique tentando imaginar onde os seus passos o levavam. Ele perdera a oportunidade de conhecer o nosso filho, embora soubesse, o fizera para o nosso bem, e de todo o reino.
- Mama! – meu garotinho debruçou-se alegremente em meu colo, apontando seu cavalo de madeira.
- Luiz, meu príncipe! – o ergui acima de minha cabeça, rodopiando amistosamente.
Ele riu maravilhado com a brincadeira, sem temer nada. Era valente como o pai, e seria um grande rei como Tea me contara com ele ainda em meu ventre, neste mesmo quarto.
“Mamãe, meu irmãozinho será como o papai. O homenzinho que ele tanto pediu, sairá como ele. Um homem digno de ser um grande rei e subir ao trono e prosseguir o seu reinado de glórias.”
Luiz me encantava com seus olhos mais escuros que a noite sem luar, os cabelos anelados e volumosos, bem parecidos com os meus, de um amarelo vívido. Um garoto perfeito e lindo. Meu príncipe iria dar orgulho ao pai e continuidade ao seu nome.
- Minhas preces foram ouvidas.
- Mamãe! – Tea adentrou pelo quarto sem cerimônias, interrompendo minha corujisse. O vestido balançava ao ritmo de seu corpo.
Tea sempre teve uma presença marcante e não nego que já tive medo de minha própria filha. Ela carrega dentro de si, coisas ao qual eu desconheço completamente, mas mesmo sem compreender claramente, percebi, nos ajudaram a manter o povo leal ao rei e principalmente, trouxeram tranquilidade ao castelo.
Eu sabia dos rumores contados sobre ela; machucavam meu pobre coração de mãe, inquietada com a sua segurança em suas seguidas andanças pela cidade, temerosa da reação das pessoas maledicentes. Divulgavam histórias feitas, baseadas em delírios fantasiosos de que minha filha seria um demônio disfarçado perambulando pela realeza ocultando-se no corpo de uma frágil criança para destruir o reino de dentro para fora, a começar pelo rei e seu herdeiro. Conversas infundadas, jogadas por nossos inimigos para enfraquecer a confiança conquistada solenemente pela atuação do clérigo e de minha amada e poderosa filha. É difícil aceitar, sem ela e o clérigo, Henrique não conseguiria... Poderíamos estar nas mãos de nossos opositores.
- Estou entediada. – Tea disse por fim, enquanto Luiz remexia nos laços a prender sua saia rodada.
- Minha filha, eu não acho que tenha mais idade para andar com esse tipo de vestimenta. – Tea estava para passar dos quinze aos dezesseis anos, um momento propício para se casar. – Incondiz com sua idade. Tantas fitas e babados, parece um pacote de embrulho pra presente, assim os rapazes da nobreza irão afastá-la como fazem a filha do duque de Braeds.
Arrepios percorreram meu pescoço ao relembrar a figura lamentável daquela menina.
- Sabe bem de minhas responsabilidades. Jamais sairei do castelo e deixar meu pai carregar esse fardo sozinho. – Tea pegou Luiz pelos braços e o fez dar voltas. – E nenhum desses rapazes da nobreza me são interessantes. Não os suporto! Tolos, isso é o que eles são.
Preferi não discutir. Tea fora uma criança feia, mimada e mal criada. Por conta de suas capacidades privilegiadas não tinha limites e tratava a todos de forma degradante. Diversas vezes tive de interceder em suas ações.
Agora, uma moça feita, encantava por sua beleza. Perdera aquela feição azeda e esnobe, restando o que há de mais belo a uma mulher. A doçura e delicadeza de uma dama. Ainda tinha essa personalidade forte e selvagem, e sabidamente afugentando os homens. Contudo eu rezo todos os dias que me apareça um homem bom capaz de domá-la e provenha de boa família, é claro.
- Você não é como as outras princesas. Jamais iria ser consultada em um conselho de guerra se não fosse os seus... Bem! – ela arqueou as sobrancelhas ao me ver quase falar abertamente sobre um tabu. – Seu pai lhe disse que você é livre para fazer o seu destino, embora eu acredite, você precisa ter um marido para lhe dar proteção e filhos, para manter o nome de nossa família.
- Quer que eu fique ainda mais entediada? – Tea cansou-se de brincar com Luiz e veio sentar-se perto de mim. – Os homens não me interessam mamãe. Seus pensamentos se resumem a, como posso explicar, são tão nojentos, e sequer conseguem... – Tea embaraçou-se toda ao falar. – No máximo alguns possuem algo de interessante.
- Quais seriam esses rapazes interessantes? – pousei meu dedo em seu nariz. – Você nunca me conta o que eles pensam. Fico curiosa.
- Nem queira. – Tea suspirou, arrancando uma lágrima involuntária. – Às vezes gostaria de não saber tudo. A ignorância pode ser uma benção. Mal sabem os ignorantes a dádiva que receberam de Deus.
Agarrei sua mão, por não saber o que lhe dizer e de alguma forma poder confortá-la de suas angústias.
- O que... – gaguejei inconscientemente, há anos fugia desse assunto. – Você vê?
Ela postou uma feição surpresa e descrente de minha extrema ousadia. Rapidamente se recompôs, sorrindo vividamente, como se nada tivesse acontecido.
- Onipresença... – Tea fechou os olhos úmidos, concentrando-se. – Eu consigo estar em todos os lugares ao qual eu queira. Um pensamento e ali estou. Rostos e lugares desconhecidos, em poucos segundos ouso dizer me são mais familiares do que a uma pessoa a passar da infância a velhice nesse lugar. Embora nem sempre eu fique satisfeita. Vivenciar sem realmente sentir os sentimentos, as pessoas, o suor do trabalho, o amor entre eles, e também, porque não, as árvores, a água, o ar, o clima, a chuva a respingar em suas faces, o sabor das gotas de orvalho pela manhã, o fogo a cozer os alimentos, o calor humano, as amizades, realmente sentir a vida em toda a sua plenitude, ver com o olhar de cada uma dessas pessoas ao qual pude conhecer mesmo que dessa forma. Isso eu sou incapaz de fazer.
- Então... – eu corei ao imaginar as possibilidades. – Pode ver qualquer coisa?
- Sim, posso ver inclusive as intimidades. – ela riu ao ver meu espanto. – Embora me dê náuseas. – Tea se adiantou a mim, garantindo que odiava ver tais cenas, mudando completamente de assunto. – Alguns me incomodam... Atos cruéis e inescrupulosos, cenas ao qual jamais desejei ver ainda repousam em minhas memórias. Vingança, ódio, poder, ganância. Já vi esses sentimentos de tão perto. Atormentam, consomem e retiram minha esperança na humanidade. Sempre me vejo tentando inutilmente deter tragédias que causam tamanhos sofrimentos.
Pela primeira vez, pude ver o fardo exposto na face de Tea, desnuda de disfarces. Uma tristeza aterradora e sem perspectivas.
- Ainda que... – ela liberou um sorriso e brilho no olhar, logo em seguida. – Haja alegria em meio a dor, a união a formar a lealdade plena e convicta nas verdadeiras amizades, o amor a preencher e esvair a agonia guardada no coração dos homens aqui e além desse muro de pedras. Eu pude ver pessoas de bem doarem o que tem de melhor em prol de outros. – Luiz puxava meu braço com insistência, e Tea o mostrou o sol resplandecente se pondo pelas montanhas através do vitral, deixando-o maravilhado. – A luz e a escuridão, não coexistem separadas. Mesmo após a noite mais fria, escura e medonha, o dia surge trazendo o calor, o fulgor e a beleza, nos fazendo acreditar em um final feliz. Acredito nisso piamente, do fundo de minha alma. – Tea observou o pátio, onde treinavam os futuros guerreiros da guarda real.
- E esse glorioso dia virá com a volta do rei?
Tea riu, levantou-se e saiu sem se despedir.
- Teeeeea! – Luiz tentou correr para ela, mas suas pernas eram demasiado pequenas atrapalhando-o todo.
***
“Você não pode ver, mas estamos ligados.”
Essas palavras permaneceram em meu coração por todos esses anos, e me vi interessado em entender o significado delas. Muitas vezes, vi ao longe a princesa mor caminhar pelos corredores do castelo, evidenciando seu cabelo dourado esvoaçante a cada passagem e algumas vezes, tive a sensação de ela me observar. Nessas raras ocasiões, sentimentos difíceis de explicar surgiam em mim, impossíveis de serem contidos. Ódio, rancor e até alegria em saber de sua proximidade, a facilitar a minha vingança.
- Ower, concentre-se! – Auran girou a espada em minha direção, e por reflexo defendi usando o cabo da espada. – Firme-se em batalha. Mantenha-se atento.
Auran era um guerreiro esplêndido, mas há algumas semanas nós sabíamos, eu me tornara superior a ele. Seus movimentos eram arriscados, embora previsíveis. Incapaz de planejar ataques elaborados e eficazes acabava por se prender em seu próprio jogo. Cansado desse marasmo, decidi por finalmente me unir a princesa mor e cumprir o meu destino. Derrotar Auran era a tarefa necessária para isso acontecer, o prometido por ela naquele fatídico dia.
Bloqueei o braço direito de Auran com minhas mãos, obrigando-o a me atacar para tentar afastar-se. Antes de qualquer ação, aproximei a lâmina da espada no pescoço de Auran, ameaçando cortar-lhe a garganta. Ele sorriu, como se confirmasse que o seu discípulo ultrapassou suas expectativas e espantado pela minha frieza.
- Finalmente liberou seu potencial. – Auran afastou a espada de sua pescoço, felicitando-me pela conquista. – Chegou o momento de se reunir com a princesa Tea e protegê-la de todos os perigos que surgirem com a sua vida. – ele estava aliviado em cumprir as ordens da princesa. No fundo, ele jamais esperou o guerreiro surgir de um mero aldeão.
- Mais ainda. – desabafei com esperança.
Auran abraçou-me, crendo ter em minhas palavras intenções nobres e puritanas em relação à princesa.
- Ela decidirá. – nem mesmo o entusiasmo nato de Auran me pareceu verdadeiro agora.
- O rei é quem sempre tem a última palavra, não é mesmo? – observei Auran enquanto adentrava os corredores de acesso ao salão, onde meu palpite dizia, a princesa mor me aguardava ansiosa. Dei um último olhar para Auran reafirmando os dizeres de um velho ranzinza, por mais que se esforçasse Auran seria sempre um peão.
- Finalmente... – entre as sombras um vulto caminhava em movimentos dificultosos nas batidas de sua bengala.
- Alguém resolveu sair da toca? – disse sarcasticamente. – Não tem medo de alguém entrar naquela pocilga que chama de santuário.
- Ainda não melhorou esses modos, sua criança tola. Aliás, me importunar e roubar meus segredos não foram problema antes, me preocupo apenas com você xeretando... – O clérigo pousou sua carcaça envelhecida sob a parede. – Cof! Cof!
- Deveria repousar, e evitar passeios desnecessários pelo castelo. – sorri maliciosamente.
- Seu moleque! – ele esbravejou. – Sua alma repleta de talentos poderia ter sido criada sem essa crítica mordaz e irritante.
- Daí você teria me escorraçado como fez com todos os outros. – ele revirou os olhos concordando.
- Você tem toda a razão, aliás, sempre tem, e isso me mata.
Sorrimos um para o outro, e decidi me aproximar, meio desconcertado, puxando-o em um abraço de agradecimento.
- Velho, muito obrigado. Seus ensinamentos permeiam bem aqui. – apontei para a minha cabeça e sinalizei para o coração. – Você me fez enxergar e conviver com o impossível. Ver além de meus olhos.
- Vamos seu tolo sentimentalista. – ele pigarreou puxando o choro. – A princesa irá mandá-lo ao inferno, e nem por isso você se afasta dela.
- Ela me disse uma pequena frase naquele salão, e só poderei sumir das vistas da princesa ao saber... – as palavras ditadas daquele rosto azedo da menina repetiam-se em meus pensamentos.
“Você não pode ver, mas estamos ligados.”
- Só cabe a você, Ower, e somente a você o destino de sua vida. – a face envelhecida e ressecada de Conei transmitia certa compaixão.
O tempo fora ácido a Conei, desde a primeira vez em que o vi até o presente momento. Ele não iria durar muito mais nessa terra e parecia feliz com isso. Estava aliviado ao repassar os seus ensinamentos adiante a um jovem que considerava de valor e aguardando para se despedir deste mundo, onde ele era um mero peão camuflado de bispo, ou melhor, clérigo.
- Há muito tempo as rédeas do meu destino são comandadas por outra pessoa.
O clérigo surpreendeu-se com a resposta, permanecendo silencioso por entre as sombras tentando conectar os fios do destino a unir-me a princesa, discutindo as possibilidades com os espíritos do vento.
Voltei a caminhar rumo ao salão principal, ignorando o velho sábio para me juntar a princesa e em breve ao rei, oferecendo-me em julgamento. O réu enfim identificou-se e lançou a primeira jogada para o xeque-mate, onde o “rei” não era a peça vital para a conclusão do jogo.
- Já não era sem tempo. – a voz doce repousou em meus ouvidos na minha chegada ao grande salão, acalentando minhas ideias.
O brasão dos Galeans permanecia na enorme flâmula entre as vidraças iluminadas, enchendo de luz o salão e o belo rosto da princesa de cabelos dourados.
- Esse foi o tempo necessário para conseguir lhe servir com o mínimo de dignidade. – ajoelhei-me a sua presença, mais como forma de irritá-la do que por respeito. – O seu escudeiro está pronto.
A princesa aproximou-se de mim. Envolveu seus braços sobre a minha cabeça, recostando o busto em minha face. Aromas adocicados exalavam de sua pessoa, anestesiando meu ódio.
- Dentre os meus feitos egoístas, talvez esse me seja o mais doído. – a princesa soluçou, e então percebi os meus cabelos sujos serem lavados pelas lágrimas de seu choro. – Mas não posso fugir disso.
- Vai me lançar como escudo para seu pai... Foi para esse momento, por isso me escolheu. – a princesa desabou em meus braços, abraçada a mim.
Senti o calor de seu corpo junto ao meu, e decidi então tê-lo para mim, não sem antes cumprir o desejo de minha princesa, ou talvez não.
***
- Que o sangue derramado hoje, seja dos malditos falcões! – gritei ao meu esquadrão na primeira linha de ataque contra os lendários arqueiros do norte.
Em meio aos gritos de guerra, saraivadas de flechas percorreram o céu em nossa direção. Bloqueamos a investida com nossos escudos de estanho, mas os falcões eram certeiros, acertando alguns de nossos guerreiros.
- Em frente! – estendi a espada contra o inimigo, alertando a primeira ofensiva de nosso exército.
Um a um, meus homens eram abatidos pelas flechas, caindo pelo campo de batalha, mortos. Alguns até conseguiram vencer a barreira quase intransponível dos arqueiros, contudo obtiveram pouco progresso, em questão de segundos, desfaleceram pela lâmina da espada inimiga.
Corpos mutilados e encharcados de sangue se amontoavam, montando o cenário para a morte do meu reino. Cair aos desígnios dos falcões. Seria esse o destino reservado para meu povo?
Meu exército fora dizimado em poucas horas, a única solução foi fugir com os sobreviventes para evitar a morte certa. Covardemente, retrocedemos nossos passos, rumo à vergonha e a derrota.
Seguimos pela floresta, rumo a uma campina de capim alto, onde havia uma velha ferraria abandonada. Dali poderíamos nos unir ao esquadrão oeste e tentar confrontá-los novamente. Meus homens estavam abalados, tínhamos de adquirir reforços para ganhar confiança.
- O que aconteceu meu amado rei? – fomos surpreendidos em uma emboscada repentina por soldados do hawkeye.
Nosso pequeno grupo criou uma defesa circular protegendo nossas costas, esperando o ataque inimigo.
- O seu orgulho é tão grande. – o homem de olhar maligno apertou o cabo de seu machado, lançando-o no homem ao meu lado, dilacerando a fronte. – Veremos até onde ele vai... – ele sinalizou para que os outros falcões acabassem conosco.
Meus companheiros eram mortos sem misericórdia, restando somente a mim. Tentando retirar o meu orgulho, decidiram por manter-me vivo preso em um cercado para porcos, enlameado e repleto de dejetos fedorentos.
- Vejamos o que farei com o homem considerado o grande rei desta era. – a inveja saltava dos olhos do homem de face amarelada, irradiando sentimentos opressivos e tenebrosos, afetando-me silenciosamente. De algum modo eu sabia, aquele homem era extremamente perigoso e jamais poderia obter o poder para suas mãos. As consequências poderiam ser desastrosas. – Você morrerá pelas mãos do futuro governante de suas terras e jamais saberá quem foi esse homem. Não é maravilhoso? – o homem gargalhou com ferocidade.
- Um louco sem humanidade jamais poderá ser um bom rei. – Estava nervoso e frustrado. Acabei me precipitando e falando sem pensar. Eu passara anos em expedições por tumbas e labirintos confusos procurando os segredos arcanos dos antigos, mas não obtive mais do que algumas antiguidades sem valor. Cheguei a cair em armadilhas poderosas. Eu vi o caos se criar em meio à mata, nos atacando e impedindo o avanço por alguns lugares.
Meu velho amigo clérigo poderia ter se enganado pela primeira vez, ou então as nébulas em suas visões embaralharam a verdade e me impediram de encontrar a chave para a vitória. Ele se negou veementemente a me acompanhar e fui obrigado a desistir e lutar com as armas que eu possuía.
- E acha mesmo que você é tão bom assim? Seu reino paira em desgraça e fome e nem vê! – Retornei minha atenção procurando manter a serenidade e não avançar contra as fuças daquele imbecil. Se fosse astuto, poderia escapar da morte pelas mãos dos falcões, e por isso resolvi me calar e consentir as afrontas.
Ele continuou por mais algum tempo a me jogar ofensas e insultos, mas desistiu ao se deparar com o meu silêncio.
Ele reuniu-se com alguns de seus homens e adentrou o barracão. Enquanto o homem vasculhava por ali, observei a movimentação dos soldados próximos, esperando uma chance de surpreendê-los.
- Olha o que temos aqui... – eles puxavam uma espécie de bacia de ferro enferrujada e suja de fuligem para fora do barraco bem próximo a mim. – Encontrei um pequeno agrado. - o homem sorriu, mostrando seus dentes apodrecidos.
Ao começarem a aquecer a peça metálica, compreendi do que se tratava e temi o fim ao qual pretendiam me dar.
- Irei fazer você sentir a dor de seu povo. As doenças que assolam essa região. A febre mortal de suas crianças. O calor dilacerante percorrendo o corpo desses pobres infelizes.
O homem pousou a espada no metal quente, deixando-a mais ardente que as chamas do inferno, ameaçando a todo o momento lançá-la contra mim, e inevitavelmente me assustando.
Os subordinados daquele homem estavam incomodados com tamanha crueldade. Dar uma morte digna a um inimigo era uma espécie de princípio para qualquer ser humano, mas o que eu via ali era um sádico pronto a me ver agonizar.
Após se contentar com a alta temperatura da espada, ele olhou para mim, amarrado, encurralado, indefeso e humilhado. Fincou a espada em meu abdômen sem pestanejar. Senti a carne de meu corpo queimar e se consumir, deixando um cheiro horripilante de borracha queimada no ar. A dor era tremenda a ponto de perder a consciência por certos instantes.
***
- Qual é a sensação de sentir o fogo penetrar em suas entranhas, meu rei? - o homem gritou descontrolado, repuxando a espada incandescente no corpo do rei. - Diga a todos como é queimar em febre pela minha mão.
- Não se fere um rei a ferro e fogo, eu não desejaria o fogo e a febre a um rei, pois irá se arrepender profundamente disso. - bradei em nome de minha senhora. Protegeria a vida de seu pai, em sinal de lealdade do rei ao réu. - Vou dizimar seu exército.
- Um homem contra um exército. Não me faça rir! Será apenas mais uma vítima lutando em nome do rei.
- Não luto pelo rei, seu hawkeye imundo! – disse ferozmente, deixando o general dos falcões intrigado.
Os soldados começaram a aparecer a minha volta, armados e preparando-se para me atacar.
- As caravelas começarão a aportar em suas terras, e uma multidão de falcões irá destruir tudo, acabar com esse reinado tortuoso e criar uma nova era. – ele continuou a repuxar a espada sem piedade. – A mudança chegará ao seu reino e você não poderá fazer nada!
- O fluxo que separa a mudança trazida pelos falcões não é muito diferente da que o rei pode proporcionar. – o homem rugiu exasperado ao ouvir o que eu disse. – Você se ilude ao se julgar superior a ele, assim como as preces feitas pelos desafortunados, ecoando sem destino além mar, fazem parte da mesma essência. Pairam igualmente no vácuo tornando-se a mesma coisa. Seu corpo terá o mesmo destino de todos os outros, se tornar cinzas e retornar a terra. Não importa os feitos, as obras deixadas, tudo acaba em morte, não é mesmo?
Reconheci alguns soldados do castelo, mesmo que não fossem amigos ou próximos a mim, eram pessoas conhecidas e machucava vê-los mortos a céu aberto, o sangue ressecado em suas feridas abertas, as moscas pousando por todo lado, o cheiro insuportável embrulhando meu estômago.
- Acabem com esse falastrão. – ordenou o homem, voltando a se divertir em sua tortura ao rei.
Os soldados obedeceram à ordem voltando-se contra mim. Retirei um terço negro produzido a partir de penas de corvos apodrecidos, iniciando um mantra assombroso.
- Que essa terra receba seus corpos com gentileza. – disse ao fim da oração.
Ergui o terço para o céu, evocando as almas da noite em um turbilhão tenebroso, consumindo a vitalidade daqueles homens, esvaindo a vida de seus corpos, restando apenas um receptáculo vazio.
- O que você é? – o torturador visivelmente abalado, sequer conseguiu se mexer.
- Um mero ser humano como você. – apontei o terço em sua direção e uma revoada de espíritos negros avançou contra o homem. – Mais uma peça desse jogo, simplesmente o cavalo. – disse simplesmente.
Ele caiu sob a bacia de metal fervente, queimando os músculos e vísceras, fritando em seu próprio ódio incontrolável. Evitei olhar a morte merecida daquela pobre alma.
Guardei o terço maldito e corri para salvar o “rei”. Os cortes estavam cauterizados pela espada fumegante, seria difícil curá-lo com feridas tão singulares.
Segurei um brasão moldado com folhas e gravetos de salgueiro, transmitindo minha energia para o pai da princesa.
Os ferimentos não se fechavam, por mais que eu tentasse e forçasse minhas habilidades. O rei iria desfalecer se eu não me prontificasse com urgência. Seus sinais vitais desapareciam a cada segundo, e só me restava uma alternativa. Uma única opção para mantê-lo vivo para poder ter a oportunidade de conhecer seu filho e reencontrar sua família.
- Necessito de um sacrifício. – acabei por dizer ao meu íntimo. – O clérigo estivera o tempo todo correto em suas visões. O inferno chegou pelas mãos da princesa e por ela eu iria me sacrificar.
Suspirei estarrecido com minhas conclusões finais. Morreria sem entender as intenções da princesa e provavelmente sem perceber as minhas próprias ações a me aproximar dela.
- Talvez eu não tenha realmente compreendido. – a princesa apareceu a minha frente como uma miragem.
- Te...a. – a quimera em minha cabeça mostrou-se na verdade ser a figura da princesa realmente. – Estamos ligados, como você me disse?
- Sim. – ela segurou minha mão em seu peito e senti as batidas de seu coração. Estavam sincronizados perfeitamente ao do meu coração. – Dois em um. A rainha e o cavalo protegendo o falso rei, somente mais um peão, para manter meu pequeno irmão no trono, o rei.
- O clérigo tinha razão então, mas as nébulas de sua visão é o que eu estou imaginando? – aproximamos nossos rostos calmamente, trocando olhares.
Nossos lábios se tocaram formando um beijo ardente.
Ao nos liberarmos, segurei a mão da minha amada princesa, usando sua energia para reavivar seu pai. – Ao rei.
- Ao réu. – ela sorriu para mim com uma doçura encantadora, apertando minha mão com toda a sua força.
*** FIM ***