Espero que gostem, em breve postarei os caps de Serie Experimental, estou tendo dificuldades em umas partes, mas assim que der eu postarei. Até
Epístola 005 – Equinócio
República Popular da China*1 – Nányuè, Província de Hunan*2 – 2016
- ... – meus dedos insistiam em desprender os pequenos pedregulhos, deixando-os rolarem pelo rochedo. – Tac! – quebrar o silêncio. Isso aliviava e retirava uma sensação intragável ocultada toscamente de minha percepção.
Essa pequena ação atiçava os sentidos dos solitários moradores dessas muralhas rochosas, fazendo-os entoar esplêndidos hinos pelo horizonte. Era isso que eu fazia nos meus raros momentos de descanso. Eu simplesmente me afastava de tudo e aproveitava uma das poucas distrações que me permitiam ter.
O gorjear das águias*3. Raramente as via, ainda que ao longe, como minúsculas flechas negras, restando então somente os seus belos cânticos. Ao entardecer, elas preparavam-se para pernoitar após um longo dia de caçada, o único momento em que voltavam para seus ninhos, e também o único em que eu conseguia ouvi-los em sua plenitude.
Podia ser um tanto bobo, mas isso é algo que me encantou desde a infância. Todos os dias eu ia até o observatório, o ponto mais alto do santuário somente para contemplar a sinfonia que elas criavam ante ao crepúsculo. A melodia da senhora do trovão e das tempestades acalmava meu coração e me davam esperança de um futuro melhor.
- YING! – meu nome ecoou fortemente tamanho a gritaria. As vésperas do festival de primavera*4 ninguém tinha sossego.
- O que deseja senhor Giki? – tentei ser educada, esperando que retribuísse da mesma maneira, sabendo que de nada adiantaria.
- Ying, volte já ao trabalho! – Giki, o responsável pelos empregados sempre pegava no meu pé, cobrando mais de mim do que aos outros. Estava farta.
- Eu já completei as tarefas. – respondi meio acidamente.
- Ainda há muito a se fazer. – ele esbugalhou os olhos em resposta ao meu atrevimento. – Ande, ande!
- Sim, senhor. – agradeci as majestosas e elegantes mestres do ar pelo belo presente e acompanhei Giki rapidamente até o pátio central.
- Tragam os lustres. – Liu gritou sob a escada em meio a duas pilastras de mármore.
Todos no santuário se esforçavam para tornar o festival um belo espetáculo. Em todo lugar, havia alguém trabalhando, nem mesmo as crianças escapavam de ajudar, carregando ou buscando algo aqui e ali. Embora a época fosse de confraternização, eu sequer era notada.
Andando em meio ao aglomerado de gente, eu não conseguia deixar de me sentir solitária. Já me acostumara a ser ignorada, embora toda vez eu sentisse meu coração se apertar apreensivo e descompassado.
Gostaria de conhecer o sentimento de amor de um pai e uma mãe, ou ao menos ter o afeto das pessoas para que fizesse diminuir esse vazio em meu peito. Todos os dias eu desejava desesperadamente por isso, o mínimo de atenção. Enquanto meu pedido não se concretizava eu iria continuar vivendo um dia de cada vez, superando as dificuldades degrau a degrau e quem sabe alcançar o que eu espero estar guardado a mim. Como nos contos de fadas eu acreditava que fosse um final feliz.
Por enquanto eu ficaria ali a servir chow mein*5. Nada parecido com os meus sonhos espetaculares e fantasiosos.
Enquanto caminhava, algumas das minhas poucas e preciosas lembranças felizes me tomaram.
- Nós, seres humanos somos o elemento desgarrado de nossas origens. – estava relembrando um de meus primeiros ensinamentos – Enquanto a natureza tende a se harmonizar, nós tendemos ao caos. Somos influenciados por nossas emoções e nos deixamos levar sem direção assim como o vento a soprar além dessas montanhas. Alcançar o equilíbrio entre corpo e mente é essencial para sermos um com a natureza. – fincado ao chão, a jian*6 dispersou minha atenção.
- O que você quer dizer com isso? – disse sonolenta.
- Transforme o negativo em positivo. – ao perceber meu desentendimento, procurou exemplificar – Aprenda a retribuir toda a hostilidade e repúdio das pessoas com boas energias.
Aquelas palavras vindas do Mestre, se passavam feito um arrojo de evasivas para me manter contida e passiva a minha situação. No santuário eu sempre fui tratada com desprezo, considerada uma ameaça a tradição e aos costumes do santuário, um erro que sequer deveria ser corrigido. No começo achei que não fosse conseguir suportar, no entanto, eu sobrevivi e continuei firme na minha caminhada. Muito disso foi pela sabedoria respingada em conta-gotas pelo meu Mestre, ao qual eu tinha total resistência em receber. Uma cabeça dura como eu somente poderia ser vencida pela paciência dele, embora eu tenha de confessar, dúvidas ainda permeiam em minhas idéias de que coisas boas virão.
E em qual parte eu carrego a culpa? Ainda não sei. Só sei que eu fui colocada a prova antes mesmo de ser julgada por meus próprios atos. Isso porque minha mãe cometeu o que os orientais extremistas, predominantes no santuário, consideram ser o pior dos pecados: se envolver intimamente com um ocidental. O fruto desse amor proibido, eu, Ying Zhen*7, uma bastarda de família e de pátria, que todos acreditam terá o mesmo destino. Ser ludibriada por um forasteiro e acabar só, grávida e sem um tustão furado, abandonando sua cria a própria sorte, amaldiçoando seu destino. Carregar o fardo de ser filha de uma impura e manter o círculo vicioso de ódio e desonra ao nome de sua família.
- Ying. – a mulher estalou os dedos próximos ao meu rosto para que eu acordasse e a servisse logo. – Estou com fome.
- Desculpe. – pela pressa, acabei derramando um pouco de comida no chão.
- Só o mestre mesmo pra deixar esse desastre ficar aqui. – a mulher me fuzilou com os olhos.
Fingi que nada aconteceu e continuei a servir chow mein agora com mais cuidado. Não queria desapontar o mestre Chen Ji.
Ele acolheu-me no santuário Heng Shan*8 sob os olhares curiosos e ameaçadores de todos que aqui vivem. Por ser o guardião do santuário, todos tiveram de acatar a sua vontade, embora isso não tenha evitado as constantes ameaças e humilhações a minha pessoa. Ele foi o único que não foi desrespeitoso comigo, em nenhum momento, na verdade, as suas palavras é que me fortaleciam a cada atitude agressiva, violenta e sem sentido que eu sofri.
Ele me apoiou incondicionalmente, principalmente quando nem eu mais acreditava em mim. Por isso, sempre que possível, eu ia visitá-lo.
***
Quando Giki finalmente me liberou, com a noite já estabelecida no céu estrelado, fui ver o mestre em seus aposentos. Era bom ver um rosto amigável antes de ir dormir.
- Entre minha jovem. – sua voz bondosa e pura confortava-me.
- Desculpe incomodá-lo tão tarde. – entrei com delicadeza e me dispus de joelhos à entrada.
- Não é incômodo. – ele devia estar exausto já que estava meditando há vários dias para espantar os maus agouros e trazer saúde e prosperidade neste novo ano, e em consequência disso os nossos treinos eram adiados. – Esse velho sempre se alegra em ver um rosto jovem que tem o bel-prazer em visitá-lo.
- Sinto-me honrada que sempre me receba. – sorrimos um para outro.
- O que a traz aqui? – ele observava o trepidar da chama da vela do altar principal em homenagem a Pangu*9. Os incensos de sândalo dispostos em todo o quarto perfumavam o local e a fumaça circulante davam um aspecto sobrenatural ao ambiente.
- Bom. – estava um pouco envergonhada por interrompê-lo em um momento tão importante. – O festival de primavera se aproxima e dizem que devemos estar com pessoas queridas a nós. Esse ano será ainda mais especial, já que teremos o equinócio*10 acontecendo na mesma data, e eu acho... – observei a chama de um amarelo intenso, perdendo a noção do que eu dizia. – É bom estar com pessoas que não me julguem sem ao menos me conhecer.
- Eles ainda não entendem, não é? – concordei. – Lamento que tenhas de pagar pelos erros de outrem. Um dia você será recompensada com bons frutos, tenha certeza disso.
- Estou à espera desse dia, mestre. – apertei as mãos sobre a coxa. – É o que eu mais quero.
- Ying Zhen, rara e preciosa águia de Nányuè, não tente apressar o tempo. – ele não retirava sua atenção da chama da vela. – Você como todos os seres vivos merece encontrar a felicidade em algum ponto de sua jornada terrestre. Eu vejo grandes acontecimentos para sua vida. Uma vida plena, ao qual terá obstáculos pesados a ultrapassar, alguns muito difíceis, mas também vejo boas coisas. Enquanto esse dia não chega concentre-se nessas palavras. – ele pousou seus olhos serenos para a imagem de Pangu. – Mesmo que digam que você não pertence a esse lugar, acredite não no que vê, mas no que você sente.
Observei meu reflexo pelo espelho fixado à parede. Os olhos esverdeados e cintilantes, semelhantes à pedra jade, cabelos dourados como os raios de sol, e a pele branca como a neve, impossíveis de se afirmar a uma chinesa convencional. Por ironia do destino, meus traços orientais foram completamente suprimidos, restando a mim o peso de carregar o sangue de dois povos, e não pertencer definitivamente a nenhum.
- Eu... – procurei em meu interior a resposta. – Gostaria de me parecer como uma autêntica chinesa, ser uma, mas eu não sou. Eu não sei se sou. – completei. – Estou confusa.
- Você está em conflito com seus sentimentos por ter sido rejeitada por seu próprio povo. – ele cerrou os olhos calmamente. – Isso é compreensível. A dor que você carrega em seu peito impede que você veja com clareza. Quando essa ferida cicatrizar, você irá descobrir qual é o seu lugar.
- Obrigada mestre. – agradeci pelas palavras reconfortantes. – Acho melhor eu me recolher.
- Eu que agradeço a visita às vésperas do novo ano. Graças a você, eu sinto que terei um ano maravilhoso a minha espera. – ele me emocionou como sempre. – E a você também.
- Eu digo o mesmo. – Fechei a porta vagarosamente e segui pelo corredor até a ala feminina.
***
A brisa matinal também era um dos consolos a minha solidão. Antes de iniciar as tarefas da manhã eu ficava apreciando a paisagem montanhosa de Heng Shan. Dia após dia, eu acompanhei o canto das águias, as donas desse céu maravilhoso, atenuando as dores desta vida sofrida.
- Um bom ano novo. – desejei a elas.
Nesse momento, cortando o céu, uma águia suntuosa parecia flutuar sobre as nuvens, uma cena belíssima. Era como se ela retribuísse os meus votos de prosperidade. O vento soprou revigorante por meus cabelos. O clima ameno me instigou a cantarolar uma canção antiga que o mestre me ensinara.
Agradecida, resolvi ir ao altar e orar. Geralmente neste horário eu costumava treinar tai chi chuan*11 com o mestre, no entanto ele se encontrava extremamente ocupado, resolvi por isso doar este tempo livre ao protetor de nosso santuário.
A gigantesca estátua de Pangu em ouro maciço cintilava com os raios de sol a tocá-la. Ela foi posta no centro do santuário onde o selo de proteção principal ficava oculto. Desde os tempos antigos essa região é assolada por seres malignos e os fundadores deste santuário decidiram por afastá-los das fronteiras do sul da China e inevitavelmente forçando-os a irem rumo à Índia.
Fiquei ali por um tempo refletindo sobre isso e depois fui ajudar a preparar a comida que íamos servir durante o festival de primavera. Estava um alvoroço. Tínhamos de preparar uma enorme quantidade de comida em um curto espaço de tempo. Um desafio e tanto para os serviçais da cozinha.
- Ying, vá picar as batatas. – a moça ao meu lado ordenou.
- Mas. – tentei argumentar.
- O que? – ela disse impaciente.
- A refeição do mestre. – era sempre um conforto vê-lo. Sabendo disso, ele me colocou como responsável para servi-lo.
- Ele teve um imprevisto e teve de fazer uma viagem urgente. – ela continuou a picar as verduras com extrema desenvoltura.
- Certo. – fui buscar o saco de batatas sem pestanejar. Com o mestre fora, eles seriam ainda piores comigo.
***
O dia estava sendo puxado. Pelo visto, eu não teria tempo de me arrumar para o festival. O equinócio se aproximava a passos largos, coincidente com a vinda do ano novo, um momento importante e eu nem poderia me preparar de forma especial.
- Pausa a todos. – Giki apareceu de surpresa na cozinha e para não dar sorte ao azar, me ocultei por detrás das panelas. – Vinte minutos.
Os que puderam sair imediatamente foram com Giki, enquanto que os demais terminavam o que era de mais urgente.
- Ying! – alguém gritou. – Vai ficar aí parada. Ou vai ou trabalha.
- Desculpe. – por um instante pensei que seria injustiçada e forçada a ficar. – Vou e volto bem rápido.
- Está esperando o que? – ele fez um gesto para eu sumir dali.
- Obrigado Hayu. – eu tinha sérias suspeitas de que Hayu simpatizasse comigo, no entanto fosse impedido de se aproximar por ter medo do que os outros iam dizer.
- Vamos menina! – tínhamos a mesma idade, mas ele sempre me tratava como seu eu fosse bem mais nova. Ele era bastante alto e robusto, díspar ao seu temperamento ameno e gentil. A pele amarelada, com seus pequenos olhos negros e um sorriso encantador. Ele tentava me evitar e ser áspero como os outros, embora houvesse sempre uma polidez em sua fala. Ele se esforçava, mas não conseguia ser hostil. Estava fora de sua natureza.
Coloquei o avental dentro da gaveta e segui até a ala feminina tomando cuidado para não me encontrar com Giki. Pelo o que eu conheço dele, adoraria me colocar para trabalhar em algo se me visse perambulando por aí.
***
Eu não tinha muitas roupas, sequer tinha uma para o festival, mas consegui improvisar algo que ficou razoavelmente bom. Uma blusa vermelha de seda com estampas florais em branco e um saiote creme com alguns amassados que insistiam em permanecer. Prendi o cabelo já que passaria a noite junto a Hayu servindo ao pessoal. Não seria nada higiênico se encontrassem fios de cabelo na comida, ainda mais fios dourados. Ninguém teria dúvidas de quem seria.
Observei minha imagem refletida no espelho, poderia melhorar, mas fiz o que pude considerando o que eu tinha. Organizei os meus pertences e segui até a cozinha, admirando os raios de sol transpassar as fendas das montanhas em volta.
- Já voltei Hayu. – ele retirou o avental e a touca de proteção e deixou as panelas sob minha supervisão.
- Veja se está bom de tempero. – disse antes de deixar o local.
Provei o conteúdo das panelas e me agradou como estava. Hayu era um ótimo cozinheiro. No futuro ele seria o responsável da cozinha com toda a certeza.
Enquanto ele se encontrava ausente apenas mantive as panelas aquecidas, preferi tomar alguns cuidados para não me sujar, aguardando que ele retornasse e pudéssemos subir antes que o festival tivesse inicio.
Quando percebi, Hayu já estava de volta no comando das panelas.
- Ying, leve isso lá pra cima. – ele me entregou uma cesta bem pesada. – Eu vou logo em seguida.
- Está bem. – segurei com firmeza.
Ao sair, vi como a decoração ficava esplêndida à noite. As lâmpadas vermelhas espalhadas em todo o pátio para espantar os maus espíritos*12; figuras de dragões pintados nas paredes para trazer sorte e prosperidade*13, arranjos de flores dispostos nas pilastras encarnadas, crianças encantadas com os dragões dançarinos e as apresentações dos espadachins. Pena que o mestre não estaria aqui para ver todo o nosso esforço se transformar nessa bela festa.
Organizei a nossa mesa, aproveitando alguns segundos para ver a alegria de todos no festival de primavera.
- Pronta para começar? – Hayu carregava dois cestos de comida, um em cada ombro.
- Claro. – disse muito animada.
Hayu colocou os cestos no chão e observou um pouco o movimento.
- Pra mim, essa será a melhor festividade. – Ele sorriu ao começar os seus afazeres, não tinha jeito mesmo, Hayu vivia para o trabalho. – Ver as pessoas felizes com a minha comida me enche de alegria. – ele sorriu docilmente para mim. – Hora vamos! Ao menos hoje você poderia abrir um sorriso.
- Hum. – jamais pensei que ele fosse querer me animar. – Está bem. – timidamente esbocei um sorriso débil.
- Você pode fazer melhor que isso. – ele estava mesmo falando sério. – Já vi você no observatório, sei que tem um sorriso lindo.
- Hayu. – meu coração disparou. – ...
Entreolhamos-nos em puro silêncio. Desconfortável com a situação, ele desviou o olhar.
- Vamos ao trabalho. – ele me passou a faca e algumas cebolas.
- Sim. – falei quase sem fôlego.
***
Evitamos qualquer aproximação nas horas seguintes.
- Hayu, eu preciso de um segundo. – ele entendeu do que se tratava e me liberou.
Já havia um tempo que precisava ir ao banheiro, mas só agora nossa barraca ficou um pouco mais folgada e permitiu que um de nós saísse. Eu sabia que o show de fogos de artifício seria dali a poucos minutos, e com certeza iria perdê-lo.
- Com licença. – tive de me embrenhar pelo amontoado de gente para chegar à escadaria principal.
Passei pelo altar de Pangu fazendo uma singela saudação e continuei pelo corredor esquerdo. A cada passo, o som diminuía até se calar, restando um silêncio assustador. Eu não me intimidava facilmente, mas algo tenebroso pairava por ali.
- Olá. – o aparecimento repentino de alguém me sobressaltou.
- Giki. – havia reconhecido sua voz, um pouco embolada, mas era ele.
- Te assustei? – ele caminhou desordenadamente em minha direção.
Estava embriagado. Sua proximidade me permitiu sentir o cheiro forte de álcool.
- O que você quer? – eu não gostava dele, nenhum pouco.
- Apenas conversar. – ele debruçou-se em mim desajeitadamente.
- Sai! – tentei empurrá-lo, mas ele forçou seu corpo contra mim.
- Não seja tímida. – ele tentou beijar minha boca e desviei enojada. – Eu sei que você gosta.
- Prefiro beijar a bunda de um macaco a beijar você. – disse com o pânico a crescer em meu peito.
Giki me prensou na parede, puxando meu cabelo.
- Adoro quando se fazem de difícil. – ele lambeu minha face enquanto eu tentava me desvencilhar.
- Me solte. – esmurrei seu abdômen afastando-o.
Segurei em seu pescoço fincando minhas unhas em sua pele, arrancando-lhe sangue.
- Ahhhh. – Giki gritou de dor.
Ele me soltou, pressionando as mãos no rosto.
- Vadia. – ele vociferou.
Aproveitei a oportunidade e corri sem rumo com o único intuito de fugir de Giki. Minha única chance era chegar ao pátio central, onde todos estavam concentrados. Os passos furiosos de Giki me seguiam, tinha de chegar até Hayu, ele poderia me ajudar. Não podia e nem queria imaginar o que aconteceria se Giki me alcançasse. Enquanto eu corria, os fogos de artifício inundaram o céu formando uma explosão de cores magníficas. Nem este belo espetáculo era capaz de diminuir a tensão daquele momento, Giki tentara... Era tão sujo, que eu nem queria imaginar.
Consegui chegar até o altar de Pangu pedindo desesperadamente por proteção.
- Por favor, eu peço encarecidamente. – ajoelhei-me ao primeiro degrau da escada do altar.
Gritos acalorados dispersaram minha atenção. Vultos espreitavam-se pelo telhado, algo de errado estava acontecendo no local do festival. Uma invasão no santuário.
- Impossível. – O mestre Chen Ji tomara todas as precauções. Havia selos de proteção espalhados por todo o santuário. Ninguém poderia entrar sem permissão.
Subi no altar e por descuido derrubei algo no chão, chamando a atenção dos invasores. Ao se aproximarem percebi que não se tratavam de seres humanos.
- Gyaaa! – uma fera de pele negra*14 rugiu preparando-se para atacar.
A criatura transpassou suas garras em meu braço, jogando-me ao chão.
- Ahhh! – o músculo se repuxou dolorosamente.
Ao olhar a minha frente, uma espada de brilho dourado repousava resplandecente. Ao segurá-la senti uma descarga elétrica passar pelas minhas terminações nervosas até o cérebro. Trovões soaram em meio aos fogos de artifício acertando o invasor, tornando-se nada mais do que cinzas.
O brilho do trovão afastou o grupo. Certamente havia selos de proteção em volta da estátua para evitar que seres mal intencionados tentassem destruir o selo principal.
Levantei com dificuldade desembainhando a jian dourada. Repassei mentalmente os ensinamentos que o mestre Chen Ji se dispôs a me passar e transpassei a lâmina da espada no peitoral de um daqueles monstros com desenvoltura ao qual eu jamais pensara ter. Ele transformou-se em cinzas, desaparecendo.
Outros se aproximaram com cautela, preparando-se para me golpear.
- FUUUUMMMM! – novos raios surgiram do céu acertando-os.
Meu corpo vacilou e não consegui suportar o peso da espada, repousando-a no piso de pedras. O sangue fluía em meu braço respingando gotas pelo chão. Ao olhar para o ferimento percebo três linhas vermelhas e profundas. Precisava fazer algo quanto a isso.
- Ying? – alguém se aproximara e eu nem percebera.
Levantei o rosto e me alegrei ao ver de quem se tratava.
- Ha... yu. – meus pés tremiam e acabei caindo, por sorte, a tempo de Hayu me segurar.
A espada fez um tilintar metálico ao cair, me alertando.
- Onde você encontrou isso? – Hayu me questionou quase como uma acusação ao observar a espada.
Estava enfraquecida, incapaz de pensar com clareza. Forcei meus pensamentos, conjecturando os últimos acontecimentos.
- No altar. – meu corpo adormeceu e não sentia mais nada. O suor escorria pela minha pele, o corpo a tremer descontroladamente e o frio a penetrar em meus ossos.
Os fogos de artifícios continuavam a embelezar o céu estrelado com a mais bela explosão de cores que eu já havia presenciado.
- Ying. – Hayu tentou me reanimar. – Mas o quê? – ele passou seu dedo próximo ao ferimento em meu braço e aproximou de seu rosto. – Veneno. Tenho de fazer alguma coisa.
- Obri... – tentei agradecer Hayu, mas não consegui.
- Não fale, mantenha suas forças. – ele me carregou em seus braços.
Finalmente meus desejos se concretizaram. Alguém me dera atenção. Uma lágrima de felicidade escorreu de meus olhos e adormeci, confiando minha vida a Hayu.
Glossário
*1 República Popular da China - República Popular da China (RPC), também simplesmente conhecida como China, é o maior país da Ásia Oriental e o mais populoso do mundo, com mais de 1,3 bilhão de habitantes, aproximadamente um sétimo da população da Terra. É uma república socialista governada pelo Partido Comunista da China sob um sistema de partido único e tem jurisdição sobre 22 províncias, cinco regiões autônomas (Xinjiang, Mongólia Interior, Tibete, Ningxia e Guangxi), quatro municípios (Pequim, Tianjin, Xangai e Chongqing) e duas Regiões Administrativas Especiais com grande autonomia (Hong Kong e Macau). A capital da República Popular da China é Pequim. A importância da China como uma grande potência é refletida através de seu papel como segunda maior economia do mundo nominalmente (ou segunda maior em poder de compra) e como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, bem como sendo um membro de várias outras organizações multilaterais, incluindo a OMC, APEC, G-20, BRIC e da Organização para Cooperação de Xangai. Além disso, é reconhecido como um Estado com armas nucleares, além de possuir o maior exército do mundo em número de tropas e o segundo maior orçamento de defesa.
*2 Província de Hunan – Hunan é uma província da República Popular da China, tem como capital a cidade de Changshae o seu nome quer dizer "Sul do Lago" por se encontrar a sul do Lago Dongting. Para além disso é atravessada pelos rios Yangtze e Dongtin. Hunan é o província central na China, conhecida pela beleza das suas paisagens naturais e faz fronteira a Norte com Hubei, a Leste com Jiangxi, a Sul com Cantão, a Sudoeste com Guangxi, a Oeste com Guizhou, e a Nordoeste com Chongqing.
*3 Águia - é o nome comum dado a algumas aves de rapina da família Accipitridae, geralmente de grande porte, carnívoras e de grande acuidade visual. O nome é atribuído a animais pertencentes a gêneros diversos e não corresponde a nenhuma classe taxonômica. Por vezes, dentro de um mesmo gênero ocorrem espécies conhecidas popularmente por gavião ou búteo. Suas principais presas são: coelhos, esquilos, cobras, marmotas e outros animais, principalmente roedores, de pequeno porte. Algumas espécies alimentam-se de ovos de outros pássaros e peixes. Para os povos orientais, a águia representa um dos guardiões do trovão e das tempestades, guardando o céu de qualquer ameaça.
*4 Festival de primavera - é o conhecido ano novo chinês, que ocorre normalmente no fim de janeiro ou em fevereiro, variando segundo o calendário lunar chinês. Ele é o festival mais importante e alegre na China, e tradicionalmente, a atmosfera festiva permanece por quase um mês. Hoje o festival é mais curto do que era, mas ainda há pessoas que celebram como antigamente: todas as preparações são feitas com antecipação, os costumes durante o festival e as celebrações duram até duas semanas depois o festival.
*5 Chow mein – noodle com legumes, prato bastante popular da comida chinesa.
*6 Jian - espada reta chinesa com crina de cavalo na cor vermelha, associada ao treino marcial e amarela ao treino espiritual segundo os princípios do tai chi chuan. Em combate, o pingente pode ser utilizado para distrair ou mesmo chicotear o adversário.
*7 Ying Zhen – Ying significa águia e zhen, raro ou precioso em mandarim.
*8 Heng shan – é uma das cinco Grandes Montanhas do Taoísmo na China. Elas são listadas de acordo com os cinco pontos cardeais da geomancia chinesa, que inclui o centro como direção.Heng shan, grande montanha meridional ou montanha do equilíbrio e também grande montanha do sul, está situado na província de Hunan e possui 1290 metros de altura. De acordo com a mitologia chinesa, as Cinco Grandes Montanhas tiveram origem no corpo de Pangu. O monte Heng shan em Hunan teria vindo do braço direito de Pangu.
*9 Pangu – primeiro ser vivo e criador de todos na mitologia chinesa. É geralmente representado como um ser primitivo, peludo, gigante, com cifres na cabeça e vestindo peles de animais. No início, o universo era vazio, um caos sem forma. Ele se fundiu em um ovo cósmico, onde os princípios Yin Yang se equilibraram e acordou Pangu deste ovo. Pangu começou a tarefa de criar o mundo: separou Yin Yang com um balanço de seu machado criando a Terra (Yin turva) e o Céu (Yang claro). Para mantê-los separados, Pangu ficou entre eles e empurrou o céu. Em algumas versões, Pangu é auxiliado por quatro animais, nomeadamente a tartaruga, o Qilin, o Phoenix e o Dragão. Após 18 mil anos, Pangu foi colocado para descansar. Sua respiração tornou-se o vento, sua voz o trovão, o olho esquerdo o dom e o olho direito a lua, seu corpo tornou-se as montanhas e extremos do mundo, o seu sangue formou os rios, seus músculos as terras férteis, sua barba as estrelas, sua pele os arbustos e as florestas; seus ossos os minerais valiosos, sua medula óssea diamantes sagrados, seu suor caiu como chuva, e as pulgas em sua pele levadas pelo vento tornou-se peixes e animais em todo o país. Nüwa a Deusa, em seguida, usou a lama do leito de água para moldar a forma dos seres humanos.
*10 Equinócio – na astronomia, equinócio é definido como o instante em que o sol, em sua órbita aparente (como vista da Terra), cruza o plano do equador celeste (a linha do equador terrestre projetada na esfera celeste), mais precisamente é o ponto no qual a eclíptica cruza o equador celeste. A palavra equinócio vem do Latim, aequus (igual) e nox (noite), e significa "noites iguais", ocasiões em que o dia e a noite duram o mesmo tempo. Os equinócios ocorrem nos meses de março e setembro quando definem mudanças de estação. Em março, o equinócio marca o início da primavera no hemisfério norte e do outono no hemisfério sul. Em setembro ocorre o inverso, quando o equinócio marca o início do outono no hemisfério norte e da primavera no hemisfério sul.
*11 Tai chi chuan – é uma arte marcial chinesa também reconhecida como uma forma de meditação em movimento. Os criadores do tai chi chuan basearam sua arte na observação da natureza, não apenas na observação dos animais, mas no estudo dos princípios da interação entre os diversos elementos naturais. Como o ser humano é parte desta natureza, o conhecimento destes princípios e de como atuam dentro de nós, estudados pela medicina tradicional chinesa, revelam o tai chi como uma fonte efetiva de energia que encontra-se em nosso interior, situada na região do corpo nomeada pelos chineses de dantian médio. O tai chi também simboliza o "Cosmo" e a interação, dos princípios energéticos Yin e Yang, em constante mutação, sendo conhecida a sua representação pelo tai chi tu (diagrama do tai chi), mais conhecido no Ocidente como o "símbolo do yin-yang.
*12 Lâmpada vermelha - Nian é uma fera que vive no fundo do mar e que vem a Terra no ano novo para devorar as pessoas, as quais tentam assustá-la dançando, estourando fogos de artifício e batendo em tambores, além de decorar tudo com vermelho, pois a fera não gosta dessa cor.
*13 Dragão – o dragão chinês é uma criatura mitológica das mais importantes da mitologia chinesa. É considerada a mais poderosa e divina criatura e acredita-se que seja o regulador de todas as águas. O dragão simboliza grande poder e era apoio de heróis e deuses. A dança do dragão é típica, apenas as pessoas fazem 8 filas de maneira a dividir os dançarinos com trajes rotos e borrados de tinta chinesa para alegrar espíritos antepassados.
*14 Rakshasa – raça de seres mitológicos humanóides ou espíritos malignos presentes na religião budista e no hinduísmo. O nome vem do sânscrito "raksha", pedir proteção, já que eram seres tão horripilantes que induziam, a quem quer que se deparassem com eles, a pedir proteção. São seres abomináveis, canibais e de mente perversa.
Obs: Foi proposital encaixar as datas do equinócio e do ano novo chinês no mesmo dia, visto que um ocorre no mês de março e outro em fevereiro, respectivamente. Isso indica que certas coisas não estão certas, mas só contarei depois de acrescentar os personagens, o que acontecerá até mais a frente.